Marielle Franco, mulher negra, mãe, filha, bissexual, parlamentar eleita com mais de 40 mil votos, militante dos direitos humanos, foi executada no centro do Rio de Janeiro em 14 de março de 2018 em um crime de feminicídio político ainda não esclarecido pelas autoridades brasileiras. A vereadora era uma das poucas mulheres negras na política brasileira, e sua trajetória era de luta contra a desigualdade, o racismo e a violência de gênero, sendo o seu assassinato uma tentativa de silenciamento a tudo que ela representava. A sua morte marcou a história política nacional e internacional, trazendo um forte debate sobre a violência política de gênero e raça e sobre o ataque a defensores dos direitos humanos no país.

Segundo o Instituto Marielle Franco, praticamente todas as candidatas negras sofreram pelo menos um tipo de violência política nas últimas eleições. Suas causas e consequências dialogam com questões estruturais e assimetrias de classe, raça, gênero e orientação sexual. Logo, a sub-representação na política institucional é um problema a ser enfrentado, visto que grupos populacionais que são, historicamente, invisibilizados e oprimidos se deparam com barreiras (interdições) maiores para ocuparem e permanecerem nos espaços públicos de representação e poder.

A violência política de gênero é um fenômeno generalizado e global. Refere-se a um conjunto de práticas e violações que atravessam, historicamente, as experiências das mulheres na política institucional. Trata-se de mecanismos que têm por objetivo silenciar, refrear e excluir mulheres da esfera política e pode ser compreendida por meio de práticas de violência física, psicológica, moral, simbólica, sexual, verbal, econômica, patrimonial, cyberbullying e o feminicídio (ONU Mulheres, p.167). Configura violência política de gênero: “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo. (Art. 326-B, Lei de Combate à Violência contra a Mulher, Lei 14.192/2021).

Além destas práticas, existem outras expressões “menos visíveis”. Elas acontecem por meio de piadas misóginas, desqualificação, ridicularização e humilhação das mulheres em posição de poder, como forma de reafirmar que o lugar público não as pertence, reproduzindo conceitos patriarcais.

A teórica feminista Sylvia Walby, em seu livro Theorizing Patriarchy, distingue o patriarcado privado do patriarcado público. Enquanto no âmbito privado as mulheres são excluídas da esfera pública e relegadas ao papel de donas de casa, com responsabilidade no cuidado de crianças e idosos e controladas diariamente pela figura masculina, no âmbito público, mesmo com o acesso a essa esfera, continuam subordinadas aos homens que compõem o espaço, sendo minorias nas posições de poder, dispondo de menos benefícios e sendo levadas a perpetuar papéis e estereótipos tradicionais de gênero. A autora então define o conceito de patriarcado público como as formas pelas quais o poder patriarcal é institucionalizado nas esferas política, econômica e cultural da sociedade. Isso inclui instituições como governo, justiça, educação e mídia.

Há um fator principal que incide sobre o lugar da mulher na política ou o seu não lugar, sobretudo nos espaços decisórios: uma construção simbólica da mulher como a mãe de família, cuidadora do lar e esteio de apoio ao marido, sobretudo quando este ocupa um cargo importante (Ruggiero, 2017). Segundo Susan Okin (2008), os homens são vistos como responsáveis pelas esferas da vida econômica e política e as mulheres responsáveis pela vida privada, em que cabem as preocupações com a domesticidade e reprodução. Ela enfatiza que “as mulheres têm sido vistas como naturalmente inadequadas à esfera pública, dependente dos homens e subordinadas à família” (p. 308) e a ideia que prevalece é a de que políticos são “homens que têm esposas em casa.” (p. 311)

Portanto, quando as mulheres ocupam lugares de representação e passam a participar da disputa política, os homens as percebem como ameaças e reforçam a prática da violência contra elas, tendo agora o âmbito público como locus. Para Morena Herrera e colegas (2009), o machismo faz com que os homens continuem reproduzindo os padrões patriarcais, manifestados pela discriminação de gênero, perpetuando a masculinização dos espaços públicos e políticos.

Essa estrutura de dominação ainda é mais perversa com mulheres negras, que precisam enfrentar ao mesmo tempo o machismo e o racismo. Ao alcançarem os espaços de poder e tomada de decisão, essas mulheres rompem com a expectativa da docilidade e servidão, reproduzida por estereótipos racistas e sexistas que buscam manter as mulheres negras em uma posição subordinada na sociedade. Isso desafia as estruturas políticas e sociais que excluíram as mulheres negras do poder, ameaçando a hegemonia de uma elite branca e masculina que historicamente controlou os espaços de poder e influência política. Dessa forma, a violência política de gênero e raça é também uma forma de perpetuar o machismo e o racismo no Brasil.

Diante desse cenário de opressões e violações, a primeira tarefa que temos pela frente é identificar os episódios que envolvem a violência política de gênero e lançar mão de possíveis estratégias institucionais de enfrentamento. A identificação se passa pelo processo de desnaturalização dos processos violentos e do reconhecimento do sexismo, racismo, lgbtfobia e outras práticas violadoras de direitos enfrentados antes da inserção das eleitas na vida político-partidária e a sua permanência nas casas legislativas e no interior dos partidos políticos.

Em um dos seus últimos discursos no Plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Marielle Franco disse: “não serei interrompida”. Infelizmente, assassinada em exercício político, a vida da vereadora foi interrompida, mas seu legado e sua luta política permanecem vivos. A lembrança do crime político cometido contra Marielle Franco nos traz um convite para criar mecanismos de proteção estatal que possibilitem que as parlamentares exerçam suas funções oriundas do voto popular em segurança e em paz.

Autoras: Luiza de Carvalho Pires e Maria Clara Souza Mendes

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; e altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais. Brasília, DF: Presidência da República, 2021. Disponível em: https://www.in.gov. br/en/web/dou/-/lei-n-14.192-de-4-de-agosto-de-2021-336315417 Acesso em: 10 nov. 2022.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Guia de Orientações para mulheres (feministas e antirracistas) eleitas para as casas legislativas. Belo Horizonte: FJP, 2022. Disponível em:
Herrera, M.; Arias, M. y García, S. (2011). Hostilidad y violencia política: develando realidades de mujeres autoridades municipales. Sistematización de experiencias de violencia política que viven mujeres electas en gobiernos municipales en El Salvador. Santo Domingo: ONU Mulheres / Instituto Salvadorenho para o Desenvolvimento da Mulher. Extraído de https://www.iknowpolitics.org/sites/default/files/hostilidad_y_violencia_politica_el_salvador_0.pdf

INSTITUTO DE DEFESA DA POPULAÇÃO NEGRA. Manual de enfrentamento jurídico # basta de violência política. Rio de Janeiro, 2022. 68 p. Disponível em: https://servicos.tre-pi.jus.br/mulheremacao/ anexos/instituto-defesa-populacao-negra-lanca.pdf . Acesso em: 11 nov. 2022.

INSTITUTO MARIELLE FRANCO. Não seremos interrompidas. Disponível em: https://www. naoseremosinterrompidas.org/. Acesso em: 5 dez. 2022

OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Tradução: Flávia Biroli. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2.

ONU MULHERES BRASIL. Cartilha de prevenção à violência política contra as mulheres em contextos eleitorais. Brasília, DF, 2021. 47 p. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Cartilha_de_Prevencao_a_Violencia_contra_as_Mulheres_em_Contextos_Eleitorais-1.pdf. Acesso em: 11 nov. 2022.

RUGGIERO, Mayna Blotta. Marcela Temer, a primeira-dama e suas representações nos portais. Folha de S. Paulo e o Globo. UNB. 2017.
Walby, S. (1990). Theorizing Patriarchy. Basil Blackwell.

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