A tarifa zero tem chamado a atenção de gestores e políticos de diferentes cidades do país, que tem visto uma explosão de casos de adoção da política em municípios pequenos e médios. Atualmente, são 105 municípios com até 355 mil habitantes que instituíram a gratuidade para todos os usuários de transporte público coletivo sem limitações (ou seja, a tarifa zero). O número aumentou significativamente após a pandemia de Covid-19, sendo que antes de 2020, eram 37 cidades com tal política (Santini, 2023)¹

 

Um pouco da história da tarifa zero

A proposta de tarifa zero tem uma história anterior à profunda crise de financiamento na qual os sistemas de transporte público se encontram. Ela foi idealizada durante a prefeitura de Luiza Erundina (PT), em São Paulo, em 1991. Era um cenário de redemocratização do país e começavam os primeiros governos populares do PT. Na ocasião, o acesso à cidade por meio dos ônibus também era um desafio e a tarifa, assim como hoje, era um empecilho para a população mais pobre se deslocar. A ideia veio da Secretaria de Transportes, com Lucio Gregori, Chico Whitaker, José Jairo Varoli e Mauro Zilbovicius (Gregori et al, 2020). 

Tendo uma dimensão inovadora e revolucionária, mesmo que dentre os marcos sociais-democratas (Domingues et al, 2023), a proposta foi de desvincular o financiamento do transporte público de sua tarifa. A partir de uma reforma para adoção do IPTU progressivo, seria possível garantir o financiamento do serviço público por meio do orçamento municipal. A origem do financiamento também garantia uma perspectiva redistributiva para a política, dando a ela uma dimensão promoção de justiça socioespacial. Por diferentes motivos políticos, a proposta não foi aprovada na Câmara Municipal de São Paulo (Veloso, 2017; Gregori et al, 2020), porém a ideia continuou dando frutos anos depois.

Os movimentos sociais se tornaram os principais defensores da tarifa zero nas duas primeiras décadas do século XXI. O Movimento Passe Livre (MPL) organizou-se, a partir de 2005, em diversas cidades brasileiras para, em contraponto com a demanda estudantil de meio-passe para a categoria, ampliar a luta para a gratuidade para todas as pessoas (Veloso, 2017). “Fora das instituições políticas tradicionais, as revoltas sociais como a revolta do Buzu de Salvador, em 2003, e da Catraca em Florianópolis, em 2004 e 2005, foram marcos de formação de movimentos e deram contexto para o surgimento do MPL em 2005” (Domingues et al, 2023, p. 7). E as manifestações multitudinárias de Junho de 2013 tiveram como estopim o aumento da tarifa de ônibus de São Paulo em 20 centavos. Foi nesse contexto que o movimento Tarifa Zero Belo Horizonte surgiu e a política retomou uma atenção nacional (Veloso, 2017; Andrés, 2023).

Porém, como abordado na introdução, é a crise de financiamento do transporte mais recente e as medidas de resposta à perda de demanda do transporte público durante e após a pandemia de Covid-19, que têm levado à adoção da política por mais municípios recentemente. A medida, então, saiu da utopia e veio para a prática.

 

Como mudar o financiamento do transporte público pode combater desigualdades

Hoje em dia, a maior parte dos sistemas de transporte público é totalmente financiado pelos passageiros por meio da tarifa: seja na hora de subir no ônibus e rodar a roleta, seja por meio do vale-transporte (lembrando que 6% do salário do trabalhador é retido na fonte para pagar o VT). Temos, então, um serviço público coletivo que é financiado apenas por seus usuários, notadamente a parcela mais pobre da população, além de feminina e negra (Bugre et al, 2022). Porém, toda a cidade se beneficia pela existência do transporte público em funcionamento: são menos carros e motos nas ruas, menos trânsito e menos poluição.

Além disso, o modelo de financiamento dividido pelo número de passageiros tem o problema do ciclo vicioso da tarifa. Quanto mais caros os insumos do serviço, mais cara fica a tarifa para quem paga. Assim, cada aumento tarifário leva à consequência de diminuição de passageiros e um consequente aumento de tarifa. Afinal, há um montante maior para dividir para menos pessoas. A saída de passageiros leva a duas consequências: (i) o aumento da exclusão das pessoas mais pobres da cidade, que deixaram de andar de ônibus porque não podem pagar; (ii) o aumento de carros e motos nas ruas. Nada nesses cenários é positivo para a cidade, que precisa de um transporte público cada vez mais eficiente, limpo e barato.

É preciso frear o ciclo vicioso da tarifa e, com isso, conseguir transportar cada vez mais gente dentro do transporte coletivo. De fato, ao garantir que o transporte seja financiado pelo orçamento público temos uma inversão na operação: toda a cidade passa a contribuir para um serviço que beneficia toda a cidade. 

O que temos visto nas três edições do seminário nacional “Transporte como direito e caminhos para a tarifa zero”², desde 2019, é que as experiências concretas de tarifa zero levam a um grande aumento de passageiros. Com a tarifa zero, há uma ampliação do acesso a serviços públicos, oportunidades de trabalho e espaços de lazer e cultura. O alívio dos gastos com transporte pode garantir mais recursos para as famílias consumirem e incentivar a economia local. Além de ter maior eficiência em termos de emissões de gases de efeito estufa. 

As experiências recentes ainda apontam para a necessidade de pensarmos os modelos de operação e financiamento dos sistemas com tarifa zero. Afinal, existem inúmeros problemas em concessões de transporte público e possíveis fontes de financiamento. Por isso, temos defendido a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM) e fontes tributárias que sejam redistributivas e transparentes, como na proposta de reformulação do Vale-Transporte (Domingues, 2023), na Campanha Busão 0800 ou na PEC 25/2023. O caminho da tarifa zero está aberto para ser trilhado por cada vez mais cidades e a busca é por experiências cada vez maiores e com desenhos da política de mobilidade cada vez mais redistributiva, inclusiva e eficiente.

 

¹Mapa colaborativo, organizado por Daniel Santini, com os municípios que adotam tarifa zero no Brasil: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1Yz0tdeejoc6xqqEl7z_QafV3ubh70lom&femb=1&ll=-20.82921457217985%2C-50.71757333068777&z=4

²Para saber mais sobre os seminários, ver: https://tinyurl.com/bddnw4b3

 

Sites para saber mais sobre a tarifa zero:

Site do Tarifa Zero BH: https://www.tarifazerobh.org/ 

Site do Sistema Único de Mobilidade (SUM): https://idec.org.br/sum 

Site do Busão 0800: https://busao0800.com/

Site da Coalizão Triplo Zero: https://mobilidadetriplozero.org/

Mapa da tarifa zero no Brasil: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1Yz0tdeejoc6xqqEl7z_QafV3ubh70lom&femb=1&ll=-20.82921457217985%2C-50.71757333068777&z=4

 

Autora: Letícia Birchal Domingues. Doutoranda em Ciência Política pela UFMG, pesquisadora do Grupo Margem: Democracia e Justiça. Também é integrante do movimento Tarifa Zero BH e consultora de política de mobilidade urbana.

 

Referências:

ANDRÉS, Roberto. A razão dos centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013. Zahar, 2023.

BUGRE, A.; QUINTAO, J. N.; MOREIRA, J.; DOMINGUES, Letícia Birchal; COSTA, L. S.; AMARAL, M. Nossos Corpos: relatório de pesquisa. 2022.

DOMINGUES, Letícia Birchal. Vale-transporte: Visão geral e passos possíveis para seu financiamento público. Nossas & Fundação Rosa Luxemburgo, 2023.

DOMINGUES, Letícia Birchal; MAGALHÃES, Bruno; ALMEIDA, Gabriel. H. Cunha de; BRASIL, Flávia de Paula Duque. Disputas discursivas no âmbito da mobilidade urbana: o caso da ‘tarifa zero’ em Belo Horizonte. In: V Encontro Nacional de Ensino e Pesquisa do Campo de Públicas, 2023.

GREGORI, Lucio et al. Tarifa zero: a cidade sem catracas. Autonomia Literária, 2020.

SANTINI, Daniel. Tarifa Zero e desigualdade social: um estudo de caso sobre a experiência de Mariana (MG) na implementação do Passe Livre no transporte público coletivo, 2023.  Dissertação [mestrado], Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP.

VELOSO, André. O ônibus, a cidade e a luta. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2017.

 

 

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