A discussão acerca da segurança alimentar e, conjuntamente, da fome (a forma mais severa de insegurança alimentar), apesar de expressar um objetivo tão básico de qualquer coletividade – garantir a seus membros as condições mínimas para uma sobrevivência biológica saudável – , é uma questão relevante há mais de 70 anos no contexto mundial (apesar de obviamente ser um fenômeno muito mais antigo), e até hoje não foram concentrados esforços suficientes para garantir a todos o acesso a uma alimentação digna. No Brasil, após um período de avanços na estruturação de uma política de segurança alimentar, que culminou na saída do país do “Mapa da Fome” da ONU, enfrentamos um grave período de retrocesso, que incluiu o desmonte das políticas e até mesmo o negacionismo mais explícito, quando não ofensivo. Em 2019, a então Ministra da Agricultura afirmou que “nós [brasileiros] não passamos muita fome porque temos manga nas nossas cidades”. Em 2021, a mesma ministra chegou até mesmo a defender a flexibilização do prazo de validade de alimentos, a fim de que seus preços fossem reduzidos e as pessoas pudessem ter maior alcance, o que claramente é uma resolução que precariza a garantia ao DHAA (Direito Humano à alimentação adequada). E o próprio ex-Presidente da República chegou a afirmar, ainda em 2019, que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Não é o que mostram os dados disponíveis, que indicam um agravamento da insegurança alimentar moderada e grave desde 2017, que só retomam uma melhora em 2023, como se verá adiante.

Segundo Tartaglia e Barros (2003 apud FALÇONI et al., 2022), a década de 50 trouxe uma nova perspectiva das ações governamentais no âmbito alimentar, passando a baseá-las em programas que priorizavam grupos sociais predeterminados, envolvendo instituições e esferas do poder público. Nesse sentido, foram realizadas conferências e reuniões que tinham como foco o debate sobre a problemática da fome em uma visão sociopolítica. Assim, começou-se a discutir esse problema em sua multidimensionalidade, levando em consideração a influência da pobreza e da gestão equivocada de alimentos (SILVA, 2014 apud FALÇONI et al., 2022). Ainda, a partir de 1980, a discussão acerca da fome passou para o parâmetro do acesso econômico (MELO et al., 2017 apud FALÇONI et al., 2022), sendo esse, realmente, o foco deste post. Em outras palavras, o debate mundial sobre a questão passou a considerar não apenas o eixo técnico, que envolve a capacidade produtiva, a tecnologia a essa relacionada e a gestão dos alimentos, mas também o eixo político, que envolve as desigualdades, especialmente a de classe no contexto das discussões dos anos 80, que perpassam a distribuição e a produção dos alimentos. Essa concepção mais ampla quanto a insegurança alimentar caracteriza a multidimensionalidade citada. 

A segurança alimentar, conceitualmente, diz respeito ao acesso à alimentação adequada e saudável, ou seja, inclui não somente o critério de quantidade de comida, mas observa-se também sua qualidade. É importante destacar que sua garantia possui respaldo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 25 e pelo artigo 6º da Constituição Federal ao ser aprovada a Emenda Constitucional nº 64 em 2010, que incluiu no artigo o parâmetro da alimentação (HENRIQUE; LAZZAROTTI; ARCELO, 2021).

Como já mencionado, esse direito foi constantemente ameaçado nos últimos anos. Durante o governo Bolsonaro, e, de forma mais específica, no período entre 2018 e 2020 ocorreu um aumento da fome no Brasil de 27,6%, ou seja, em dois anos, o número de indivíduos em insegurança alimentar grave – passando fome – foi de 10,3 milhões para 19,1 milhões – quase dobrou de quantitativo. Em 2022, esse número era ainda maior, com 33,1 milhões na situação grave em questão. 

Ao longo da pandemia do coronavírus, iniciada em 2020, observou-se uma demora do Governo Federal em implementar diretrizes para o enfrentamento tanto da doença quanto da insegurança alimentar agravada pelo contexto de desigualdades sociais e instabilidade socioeconômica que a primeira fomentou. Isto  levou à privação do acesso aos alimentos, ligada a um contexto de insuficiência de renda, devido ao acelerado aumento do preço dos alimentos, ao desmonte de políticas e à falta de uma estratégia nacional para lidar com as consequências das restrições causadas pela pandemia (como a interrupção da merenda escolar, diante do fechamento das escolas). Nessa conjuntura, o aumento dos preços dos alimentos foi possibilitado, dentre outros fatores, pela ausência de uma política agrícola de regulação de preços e pela desvalorização do real, estimulando a exportação e desabastecendo o mercado interno de alimentos básicos. Assim, é possível observar que a insegurança alimentar está fortemente conectada com a situação econômica do país, relacionando-se também ao fator do desemprego. Em 2020, a insegurança alimentar grave na região Norte chegou aos 18%, ou seja, quase uma em cada cinco famílias da região estavam passando fome no dia a dia. Em 2022, segundo o VIGISAN (2022), esse número chegou a assustadores 40,2% na região Norte e 22,6% no Nordeste, percentuais muito menores que o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste (10,3%, 15,6% e 16,5%). Destarte, a pandemia do coronavírus intensificou um cenário que teve início antes da pandemia, com as políticas de austeridade executadas no Brasil desde o ano de 2014, que são parte de uma agenda neoliberal. 

Apesar das dificuldades enfrentadas no combate à fome nos últimos anos, principalmente em virtude da citada crise de saúde, observou-se um crescimento da segurança alimentar nos domicílios brasileiros em 2023. Os dados utilizados para a análise do presente post do Observatório das Desigualdades são do IBGE, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, utilizando como referencial metodológico a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que possibilita identificar e classificar os domicílios em função do padrão de segurança alimentar dos habitantes. 

Os dados mostram que no quarto trimestre de 2023, dos 78,3 milhões de domicílios particulares permanentes brasileiros, 56,7 milhões encontravam-se em condições de segurança alimentar, representando um percentual de 72,4%. Na pesquisa anterior – POF 2017-2018 – a proporção era de 63,3%. Assim, tem-se um aumento de 9,1 pontos percentuais. 

Destaca-se também que, segundo André Martins, analista da pesquisa, houve uma propensão ao aumento dos níveis de segurança alimentar nos anos de 2004, 2009 e 2013, sendo que em 2013 ela atingiu o seu ápice (77,4%), porém, observou-se uma queda no ano de 2017. Todavia, em 2023 ocorreu justamente o contrário, com a ampliação do número de domicílios em situação de segurança alimentar e a diminuição dos com insegurança alimentar em todos os graus.

Em adição, as zonas rurais foram as que tiveram maior participação nos índices de insegurança alimentar. Enquanto a proporção de domicílios particulares com insegurança alimentar nas áreas urbanas era de 8,9%, nas áreas rurais era de 12,7%. Mesmo em vista dessa problemática, o índice nas zonas rurais foi o menos expressivo desde a PNAD 2004 (23,6%). 

Comparativamente, ocorreu uma diminuição de 25% do número de domicílios em insegurança alimentar leve entre os anos de 2017 e 2023. Entre 2004 e 2009, por outro lado, a proporção de insegurança alimentar sofreu poucas alterações. Já no que concerne às formas de insegurança alimentar moderada e grave, houve uma pequena, mas significativa, redução e uma manutenção, respectivamente, entre os anos de 2018 e 2023, apesar da grave piora entre os anos de 2021 e 2022. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, nesse período foram identificados 15,5% de domicílios brasileiros em condições de fome, representando 33 milhões de pessoas.

 

Gráfico 01: Prevalência de segurança alimentar e insegurança alimentar nos domicílios particulares permanentesFonte: IBGE

 

O desafio de seguir enfrentando a Insegurança alimentar e reduzindo desigualdades

Apesar das melhoras importantes observadas, é preciso que o conjunto de iniciativas que as possibilitaram seja mantido e ampliado, a fim de erradicar definitivamente a fome no Brasil e nos prepararmos para os novos desafios, como aqueles advindos das consequências das mudanças climáticas, que já vêm afetando a produção e preços dos alimentos. A ampliação do financiamento, da segurança aos produtores e o início de esforços de descentralização da produção de alimentos são primeiras iniciativas na direção de redução de riscos e resistência a choques na produção. Entretanto, provavelmente novos instrumentos terão que ser postos em prática, como a tragédia em curso no Rio Grande do Sul evidencia.

Além disto, mais do que a ampliação das condições gerais de segurança alimentar, permanece também o desafio do enfrentamento às persistentes desigualdades na garantia do acesso ao direito à alimentação. Como se verá adiante, as desigualdades regionais, socioeconômicas e raciais são graves também neste âmbito e devem ser objeto de atuação específica.

 

Regionalização da insegurança alimentar

As regiões Norte e Nordeste apresentaram os menores índices de domicílios particulares com segurança alimentar, apesar de representarem mais de 50% dos moradores com acesso integral aos alimentos, levando em conta ambos os vieses qualitativos e quantitativos. A proporção da região Norte foi de 60,3%, enquanto a da região Nordeste foi de 61,2%, sendo que o número de domicílios analisados foi de 3,6 milhões e 12,7 milhões, respectivamente. Nessas duas regiões, observa-se que existe uma grande incerteza acerca do acesso ao alimento, uma vez que a insegurança alimentar leve é presente em cerca de um em cada quatro domicílios particulares em ambas regiões. Já a região Sul foi a que mais contou com domicílios em situação de segurança alimentar, com 83,4%. Nota-se que a desigualdade no acesso aos alimentos no Brasil é de fato muito alta. A título de exemplo, a região Norte conta com aproximadamente quatro vezes mais domicílios em situação de insegurança alimentar grave em comparação a região Sul. No ano de 2023, o estado do Pará foi o que obteve maior índice de domicílios com insegurança alimentar moderada ou grave, com 20,3%, seguido de Sergipe e Amapá, com 18,7% e 18,6%, respectivamente. Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo e Rondônia obtiveram os menores percentuais, por outro lado. As observações em questão estão sintetizadas no Gráfico 02.

 

Gráfico 02: A situação da segurança alimentar no Brasil por estado e por Região

Fonte: IBGE

 

Perspectiva de raça, gênero e escolaridade

Dentre os domicílios que apresentaram graus de insegurança alimentar, 59,4% possuíam uma mulher como responsável, sendo que o âmbito da insegurança alimentar moderada foi o que demonstrou uma maior disparidade, com 60,6% dos domicílios nessas condições tendo responsáveis mulheres. O grupo feminino está inserido em um parâmetro de vulnerabilidade social que permite a manutenção do ciclo de pobreza: baixo rendimento per capita familiar, hiperresponsabilização de tarefas domésticas – uma vez que são atribuídos às mulheres trabalhos que tenham relação com suas aptidões naturais, concebidas a partir do senso comum – e obstáculos para terem espaço no mercado de trabalho formal, o que relaciona-se com o preconceito nesse âmbito e com um cenário de escassez de cargos disponíveis [1].  

Sob a perspectiva racial, a maioria dos responsáveis pelos domicílios eram de cor ou raça parda (44,7%), porém, no âmbito da insegurança alimentar grave, 58% dos domicílios possuíam como responsável um indivíduo de cor ou raça parda, representando mais que o dobro dos domicílios nessas condições que tinham como responsável alguém de cor ou raça branca (23,4%). Esse cenário é fruto de uma perspectiva histórica em que as famílias negras sofrem com taxas de desemprego mais altas, renda menor e índices de pobreza bem maiores do que o observado nas famílias brancas, permitindo que eventuais recessões econômicas e  grande nível de desemprego afetem de forma mais significativa os núcleos familiares negros [1].

No que diz respeito ao nível de escolaridade, foi possível inferir que mais da metade (52,7%) dos domicílios enquadrados no âmbito da insegurança alimentar possuíam responsáveis com, no máximo, ensino fundamental completo. Nos domicílios em insegurança alimentar grave, 67,4% possuíam à frente pessoas sem instrução ou com ensino fundamental completo ou incompleto. 

 

Perspectiva de ocupação, fatores etários e de rendimento

Sobre a ocupação do indivíduo responsável pelo domicílio, os que eram trabalhadores domésticos, na época da pesquisa, representavam 3,5% dos domicílios em segurança alimentar, ao passo que o total dos domicílios com essa categoria de responsável era de 4,4%.

22,8% dos domicílios estavam em segurança alimentar quando os responsáveis eram empregados com carteira assinada no setor privado, índice esse maior do que o inferido no total de domicílios (20,5%). Os trabalhadores do setor privado sem carteira assinada eram responsáveis em 6,1% dos domicílios em segurança alimentar, ao passo que, no total de domicílios, representavam 6,7%. No âmbito dos domicílios com insegurança alimentar grave, 6,6% possuíam trabalhadores domésticos à frente e, 8,1%, trabalhadores sem carteira assinada.

Analisando fatores etários, 4,5% dos indivíduos de zero a quatro anos de idade e 4,9% das pessoas de cinco a dezessete anos eram vítimas da insegurança alimentar grave. Ao observar as pessoas de sessenta e cinco anos ou mais, todavia, a proporção era de 2,8%. Com esses dados, nota-se que, quanto mais se avança em termos de idade, menos se tem pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar. Assim, observou-se a existência de maior insegurança alimentar nos domicílios onde residiam crianças e/ou adolescentes.

No que concerne aos rendimentos, nos domicílios com insegurança alimentar moderada ou grave, 50,9% de sua totalidade possuía rendimento per capita inferior a meio salário mínimo, que era de R$1.320,00, durante a maior parte do ano de 2023. Totalizando 79,0%, os casos de insegurança alimentar se dividiram nas faixas de rendimento por domicílio: rendimento per capita de zero a ¼ de salário mínimo (24,1%); rendimento per capita maior que ¼ e no máximo ½ do salário mínimo (26,8%); rendimento per capita maior que ½ e no máximo um salário mínimo (28,1%). Os dados comentados estão na Tabela 01.

 

Tabela 01: distribuição dos domicílios por situação de segurança alimentar segundo critérios de raça, gênero, escolaridade, renda, trabalho e número de residentes

Fonte: IBGE

 

Concluindo, apesar do crescimento do índice de segurança alimentar em 2023, no âmbito nacional, nota-se que as desigualdades permanecem relevantes. Nesse sentido, as pessoas são afetadas por esse fenômeno de formas diferentes, sendo que os historicamente privilegiados ocupam posições mais favoráveis. Assim, fatores econômicos, sociais, ambientais, políticos e educacionais são relevantes para compreender essas disparidades [1]. É importante tratar a questão da segurança alimentar como algo coletivo, ou seja, necessita-se de uma mobilização governamental e é também importante a construção da perspectiva de que suas implicações se entrelaçam com outras problemáticas, como a pobreza e a existência de políticas públicas rasas (CAMPANHARO, 2021). Por esse ângulo, de acordo com Fernandes (2022), um caminho relevante para o alcance desse desenvolvimento seria a implementação de uma mudança no modelo vigente de desenvolvimento econômico, caracterizado pela segregação social.

 

 

 

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG

 

Referências

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO – MDS. 24,4 milhões de pessoas saem da situação de fome no Brasil em 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/24-4-milhoes-de-pessoas-saem-da-situacao-de-fome-no-brasil-em-2023>. Acesso em: 22 maio. 2024.

CAMPANHARO, R. O retorno da insegurança alimentar na mesa dos brasileiros após anos de avanços. Observatório das Desigualdades. 2021.

FALÇONI, S et al. MÁQUINA DO TEMPO: O Brasil de volta ao Mapa da Fome. Observatório das Desigualdades. Boletim nº 14. 2022. 

FERNANDES, B. PANDEMIA E A CRISE ECONÔMICA: O AUMENTO DA INSEGURANÇA ALIMENTAR NO BRASIL. 2022. 

FERREIRA, I. Segurança alimentar nos domicílios brasileiros volta a crescer em 2023. Agência de Notícias IBGE. 2024. 

g1 Política. ‘Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira’, diz Bolsonaro. 2019. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/19/falar-que-se-passa-fome-no-brasil-e-uma-grande-mentira-diz-bolsonaro.ghtml>

HENRIQUE, A; LAZZAROTTI, B; ARCELO, M. A fome e as sobras: o desafio da segurança alimentar e as políticas públicas. Observatório das Desigualdades. 2021.

II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]: II VIGISAN : relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. — São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert : Rede PENSSAN, 2022.

[1] Observatório das Desigualdades. Muito além do arroz: O retorno da fome e da insegurança alimentar no Brasil é uma tendência; minimizá-lo, uma perversidade. 2020.

Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Nota pública: dados do IBGE sobre a insegurança alimentar no Brasil. 2024. Disponível em <https://pesquisassan.net.br/nota-publica-dados-do-ibge-sobre-a-inseguranca-alimentar-no-brasil/>

UOL Notícias. “Brasileiros não passam fome porque têm mangas nas cidades”, diz ministra. 2019. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/04/09/brasileiros-nao-passam-fome-porque-tem-mangas-nas-cidades-diz-ministra.htm>

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