No dia 11 de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, com vetos, a lei que restringe a “saidinha” de presos. O Projeto de Lei (PL 2.253/2022), que a originou, previa a revogação total das saídas temporárias. No entanto, os vetos do presidente permitem que o benefício ainda exista para casos de visita às famílias e para a realização de atividades que colaborem com o convívio social, baseados no argumento de inconstitucionalidade devido à obrigação do Estado de proteção à família.

Essas recentes mudanças trazem à tona uma importante discussão sobre os impactos das restrições na ressocialização dos presos. Apesar dos vetos que suavizaram a restrição total, o impacto das novas medidas na reinserção social pode ser significativo. Para a discussão desses impactos, é de suma importância a compreensão do contexto de cumprimento de pena no sistema carcerário brasileiro e como ele afeta a ressocialização.

O sistema carcerário como sistema desumano de manutenção das estruturas sociais

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, as condições de superlotação e insalubridade são persistentes ano após ano. É possível observar no Gráfico 1, o crescimento da população carcerária no Brasil nos últimos 10 anos. Esse crescimento representa um aumento de 70% desde 2013 até 2022. Paralelamente, pode-se observar que o déficit de vagas (Gráfico 2) no sistema carcerário também é sistêmico, apresentando altas taxas em quase toda a série apresentada.

Gráfico 1. Evolução da população carcerária no Brasil – 2013-2022

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Elaboração própria.

Gráfico 2. Taxa do déficit de vagas no sistema prisional – 2013-2022

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Elaboração própria.

Esse cenário de superlotação, além de outras violações que ocorrem nas prisões, gera condições subumanas de existência, em virtude das condições insalubres agravadas pela grande concentração de presos em um mesmo espaço.. Além disso, a falta de separação dos condenados de acordo com o delito, viola a Lei de Execuções penais e potencializa as situações de violência, especialmente aquelas associadas ao recrutamento forçado para outros crimes e entrada em facções.

Além disso, o problema estrutural no sistema penitenciário brasileiro não se limita apenas à superlotação, mas também à qualidade e condições de trabalho dos agentes penitenciários. Estes profissionais, que desempenham um papel crucial na segurança e na gestão das prisões, muitas vezes não recebem o treinamento adequado para lidar com a complexidade do ambiente carcerário. Sem um treinamento específico e contínuo, os agentes são deixados à própria sorte para administrar situações de conflito, violência e outras questões complexas relacionadas ao comportamento dos detentos.

Desse modo, segundo Martins (2013, apud LEMOS, 2015):

A incapacidade de controle pelo poder público sobre a população carcerária, a falta de apoio ao egresso para reinserir-se na comunidade, a falta de preparo dos agentes penitenciários, além do descaso do Estado aos direitos dos presos, ao não assegurar condições elementares de encarceramento (assistência jurídica, social, médica), evidenciam a realidade alarmante e preocupante das prisões brasileiras.

Além disso, o sistema carcerário também pode ser visto por uma ótica de manutenção de estruturas sociais, ao passo em que a maior parte da população carcerária é, historicamente, negra, como fica explicito no Gráfico 3.

Gráfico 3. Evolução da população carcerária no Brasil – 2013-2022

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Elaboração própria

Nessa perspectiva de um sistema que tira a dignidade da pessoa humana, retroalimenta a criminalidade e reforça e cria estigmas sociais, pode-se concluir, segundo Mirabete (2002 apud BARROS, 2022), que:

A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior. A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação.

A importância das saídas temporárias no processo de ressocialização

O Art. 1 da Lei de Execução Penal (LEP) expressa como objetivo principal da pena não apenas a punição, mas também a integração social harmônica do condenado. Nesse sentido, o sistema prisional seria um lugar de isolamento do preso da sociedade, com intuito de prevenir o crime e gerar reflexão do detento, mas sem gerar a segregação do indivíduo na sociedade, devendo ter como principal função, a sua gradual reinserção social (SOARES, 2016).

Perda de emprego, estigmas, perda de perspectiva de futuro e a ruptura familiar são exemplos de custos sociais, enfrentados pela população carcerária, que são negligenciados por um sistema que deveria se preocupar em ressocializar os detentos, mas acaba por segregá-los cada vez mais.

Nesse contexto, as saídas temporárias são importantes para que haja a possibilidade de que pessoas submetidas a penas de restrição de liberdade, possam, aos poucos, se reintegrar na sociedade e se conectar com a família, principalmente tendo em vista que a família 3 desempenha um papel crucial nesse aspecto, colaborando com uma rede de apoio ao detento durante a passagem em um sistema prisional constantemente desumano. Essa experiência fora do ambiente prisional contribui para que os detentos se familiarizem novamente com a vida em liberdade, facilitando a transição para o retorno à comunidade após o cumprimento da pena.

Além disso, outro ponto relevante é que as “saidinhas” estão condicionadas ao bom comportamento dos presos, o que estimula a manutenção de uma conduta disciplinada e responsável. Essa exigência de comportamento adequado durante as saídas temporárias pode servir como um incentivo para os detentos buscarem a reabilitação e demonstrarem um comprometimento com a ressocialização.

Apesar da clara importância das saídas temporárias no contexto da ressocialização e de sua garantia legal e constitucional, há uma forte pressão para seu fim. Isso se baseia fortemente no argumento da insegurança e da sensação de insegurança da população. Entretanto, o argumento da criminalidade decorrente das “saidinhas”, além de cruéis, são infundadas. Segundo a Vara de Execuções Penais (VEP), 95% das pessoas que receberam o benefício retornam ao presídio. Além disso, os dados revelam que a média de crimes durante as saídas temporárias e o restante do mês se mantêm, sendo que alguns delitos aumentam enquanto outros reduzem, mostrando não haver relação direta entre as taxas de criminalidade e as saídas. Desse modo, a percepção de insegurança se baseia, não em fatos, mas na estigmatização do aprisionado.

Essa marca negativa imposta pela sociedade interfere em todas as áreas da vida do condenado, como a psicológica e a profissional, e acaba afetando diretamente na possibilidade de redenção do preso que, ao perder as perspectivas de voltar a levar uma vida normal após o cumprimento de pena, tende a reincidência.

Assim, as saídas temporárias desempenham um papel importante no processo de reabilitação, proporcionando aos presos a oportunidade de se reconectarem com suas famílias e de se reintegrarem na sociedade. Quando essas saídas são restringidas, mesmo que parcialmente, há um movimento na contramão de um sistema que deveria reintegrar o encarcerado na sociedade ao passo em que, ao invés de evoluir por meio de programas de capacitação profissional, suporte psicossocial e sensibilização da sociedade para ajudá-los a superar o estigma e construir uma nova vida, retrocede ao mantê-lo cada vez mais integrado a um sistema muitas vezes considerado uma “escola do crime”.

Autora: Larissa R M Silva- Assistente de Pesquisa do Núcleo de Estudos em Segurança Pública da Diretoria de políticas Públicas da Fundação João Pinheiro e Aluna do Curso Superior de Administração Pública/ FJP.

Referências Bibliográficas

BARROS, Marcus Vinicius Alencar. A ressocialização do apenado como fator determinante para aplicação do princípio da humanização. [S/l], 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/377773/a-ressocializacao-do-apenado-e-a-aplicacao-doprincipio-da-humanizacao. Acesso em 27 abril. 2024.

BRANCO, Fernando Castelo. VEP divulga dados relativos à criminalidade durante saídas temporárias. Vara de Execuções Penais/ Poder Judiciário do Estado do Piauí, 2017. Disponível em: https://www.tjpi.jus.br/portaltjpi/tjpi/noticias-tjpi/vep-divulga-dados-relativos-a-criminalidad e-durante-saidas-temporarias/#:~:text=Os%20dados%20revelam%20que%20a,em%20%C3% A9poca%20de%20sa%C3%ADda%20tempor%C3%A1ria. Acesso em: 28 abril. 2024

SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 20 dez 2023 . Acesso em: 28 abril. 2024 SOARES, Samuel Silva Basílio.

A EXECUÇÃO PENAL E A RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO. Semana Acadêmica Revista Científica, ed. 94, vol. 01, 2016. Disponível em: https://semanaacademica.org.br/artigo/execucao-penal-e-ressocializacao-do-preso. Acesso em: 27 abril. 2024

Deixe um comentário