Em janeiro de 2023 o governo Lula decretou estado de emergência em saúde pública no maior território indígena brasileiro: as crianças Yanomami sofriam de desnutrição severa, ocasionadas pela invasão do garimpo ilegal e a dificuldade de acesso às condições mínimas para sobreviver. Abril foi o mês da visibilidade indígena e, apesar da repercussão de mídia do caso Yanomami, o relatório publicado pelo Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI) [1] neste ano demonstra que a desigualdade no atendimento à saúde de crianças indígenas produz o apagamento de um futuro sonhado em meio à luta pela existência. 

Ao contextualizar os elementos que re-atualizam a crise humanitária vivida por diferentes povos que habitam o território nacional, o relatório exprime uma realidade desconhecida para muitos brasileiros – a de que, para esses povos, os modelos ocidentalizados de atendimento à saúde nem sempre são eficazes em respeitar suas formas de existir no mundo, e que o desenvolvimento infantil saudável significa, para muitos deles, coisas diferentes do que para uma família brasileira branca e urbanizada, por exemplo. Apesar de representarem apenas 0,83% do total da população, existem mais de 300 etnias indígenas no país, e são faladas mais de 270 línguas. Em meio a toda essa diversidade, os povos originários compartilham, dentre outras coisas, forte relação com seus territórios e dependem deles para subsistir. Por isso, uma das principais razões elencadas pelo NCPI para a desnutrição indígena infantil está diretamente relacionada com o avanço do garimpo ilegal, deixando um rastro de desmatamento, poluição e pobreza.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza, no Art. 7.º, que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. O relatório do do NCPI, ao comparar as taxas de mortalidade entre crianças indígenas e não indígenas, todavia, revela que até 2022 elas permaneciam profundamente desiguais. A máxima “mortes evitáveis têm culpas atribuíveis”, muito propagada durante a crise provocada pela Covid-19 no Brasil, se aplica, de igual forma, às taxas de mortalidade observadas nos gráficos a seguir, bem como à proporção das causas entre os dois grupos. A ineficiência do poder público em garantir a proteção de populações indígenas, historicamente vulnerabilizados no país, tem como consequência a morte de seis vezes mais crianças indígenas por desnutrição, quando comparadas com crianças não indígenas. 

O tema é objeto de preocupação ainda maior ao analisar a composição demográfica dos povos indígenas no Brasil, pois percebe-se uma distribuição etária distinta em comparação com a população não indígena. Os dados [2] revelam que uma parcela significativa, correspondente a 56,10%, possui menos de 30 anos de idade, um percentual consideravelmente superior ao observado na população geral do país, que é de 42,07%. A faixa etária com maior representatividade entre os indígenas é a de zero a 14 anos, abarcando 29,95% do total, seguida pela faixa de 15 a 29 anos, com 26,15%, e de 30 a 44 anos, com 19,63%. 

É comum o discurso pela não demarcação de territórios indígenas no Brasil. Apoiados na falácia desenvolvimentista, que coloca o lucro acima da biodiversidade e do reconhecimento da indissociabilidade entre cultura, território e modos de vida dos indígenas, muitos grupos étnicos originários não dispõem mais de recursos naturais para a existência digna segundo as suas formas de viver. Os mapas abaixo situam alguns desses grupos na condição de pobreza deixada pela invasão e não demarcação desses territórios, comprometendo a segurança alimentar das famílias. A pobreza e a falta de assistência para a promoção do acesso à saúde resultam no não acompanhamento pré-natal recomendado pelos órgãos públicos. A falta de integração do Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena ao Sistema Único de Saúde (SUS) também é apontada pelo relatório como uma barreira à redução dessas desigualdades. 

Em suma, são muitos os fatores que contribuem para a precarização do atendimento à saúde de populações indígenas. Somados àqueles já enumerados, está a dificuldade de acesso aos territórios, a má gestão dos dados relacionados à saúde indígena, a falta de profissionais atuando nas comunidades e de formação específica e continuada. É importante reafirmar, contudo, que não seria suficiente a resolução de todos esses problemas sem que haja uma responsabilização do poder público para proteção daquilo que é fundamental à saúde em uma perspectiva contra-colonial: o direito à terra. Profissionais de saúde, ao ocupar os postos destinados a essas populações, são expostos aos conflitos territoriais violentos na ausência do Estado em garantir esse direito básico, primordial na manutenção das vidas e culturas indígenas. A luta pela igualdade, nesse contexto, carrega profunda conexão com a prática da  diversidade. 

Que as nossas diferenças não excluam a possibilidade de re-conhecimento do que nos une.

 

Autora: Ariel Morelo, sob orientação do professor Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG

 

Referências: 

[1] https://ncpi.org.br/wp-content/uploads/2024/04/NCPI_WP12_Desigualdades_em_saude_de_criancas_indigenas_2024.pdf

[2] https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3107/cd_2022_quilombolas_e_indigenas.pdf

Deixe um comentário