O Brasil está na torcida pelo Oscar deste final de semana. E nós, do Observatório, também já pegamos nossa pipoca e estamos mandando as melhores energias para Fernanda Torres, Walter Salles e todo o pessoal do filme. Mas, independente de Oscar ou de qualquer premiação, “Ainda estou aqui” já fez história. O sucesso internacional do filme , dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres, representa um marco para o Brasil, tanto do ponto de vista cultural, quanto das discussões suscitadas pela obra. Ao ingressar no circuito das grandes produções internacionais e competir com os blockbusters hollywoodianos, a obra reafirma a força do cinema nacional e amplia sua presença no cenário global.  

Sua indicação ao Oscar e a outras premiações internacionais abre uma brecha na hegemonia das produções do Norte Global, trazendo para o centro do debate a história de uma família brasileira. Ao retratar a trajetória de Eunice Paiva, suas vivências durante a ditadura militar e sua incansável busca por justiça pelo desaparecimento do marido, o filme diversifica as narrativas do cinema mundial e oferece uma perspectiva distinta do olhar estadunidense.

Diante disso, além de alcançar milhares de espectadores ao redor do mundo, seu impacto ultrapassa a arte e a cultura, fomentando reflexões acerca da crise das instituições democráticas na atualidade. Ao resgatar uma história marcada pela luta por justiça e direitos, a obra estimula discussões essenciais sobre os desafios enfrentados pelo sistema democrático no Brasil e no mundo. 

“Ainda estou aqui” mostra, o impacto brutal sobre a vida, mas também a resistência e a luta por justiça de Eunice Paiva e dos familiares de Rubens Paiva, ex-deputado que preso, torturado, assassinado e que teve seu cadáver ocultado pela ditadura militar no Brasil.

A história de Rubens Paiva e sua família ilustra outras tantas atrocidades cometidas neste período no Brasil. Como já lembramos aqui no Observatório em outra ocasião, No dia 31 de março ou 1º de abril de 1964 é deflagrado o golpe civil-militar que instauraria a ditadura sob a qual o país viveu por mais de duas décadas, até a posse do primeiro presidente civil, em 1985, e a elaboração e promulgação da Constituição democrática de 1988. 

Desmistificando a Ditadura Militar 

Não foi uma “ditabranda”, como costumam relativizar alguns daqueles que lhe ofereceram cumplicidade ou conivência. A ditadura, desde seus primeiros momentos, valeu-se da sistemática violação dos direitos humanos dos cidadãos brasileiros:  os agentes do Estado cometeram 434 assassinatos e desaparecimentos identificados; 210 de suas vítimas continuam desaparecidas. Tampouco eram desvios pontuais: pelo menos 377 agentes de Estado apontados como responsáveis diretos por estas violações. Durante o período mais violento da ditadura, sob vigência do AI-5,  foram censurados cerca de 200 livros, além de 500 filmes, 450 peças de teatro, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas, segundo Zuenir Ventura. Além disto, o AI-5 atingiu de forma direta, de maneira formalizada e documentada, mais de 1.607 cidadãos, de ocupações e setores os mais variados, que foram atacados com diferentes expedientes – cassação, suspensão de direitos políticos, prisão, banimento e afastamento do serviço público. Já os inúmeros casos de perseguição, homicídio e tortura, realizados nos porões e esgotos da repressão e ainda sem solução ou registro, seguem como um sofrimento adicional infligido a familiares e amigos, aos quais foi negado o direito mais básico de prantear e enterrar seus mortos. Incapazes de fazer justiça, honrar nossos mortos e de enfrentar nosso passado, a ameaça autoritária segue assombrando e oprimindo os vivos.

Novas Ameaças, Mesmos Desafios

No século XXI, o autoritarismo vem se apresentando de novas formas. Enquanto no século XX a principal ameaça à democracia eram os golpes militares, que violentamente derrubavam os representantes e as instituições democráticas, nos anos 2000 novas dinâmicas de erosão democrática se apresentam. Em vários países, desenvolvidos ou do Sul Global, governantes que ascendem ao poder pelo voto popular vão paulatinamente solapando a ordem democrática: expandindo seus próprios poderes; perseguindo adversários; enfraquecendo a independência ou a capacidade das instituições de controle, freios e contrapesos; desmantelando as organizações e políticas públicas; reprimindo intimidando todas as formas de diversidade que não sejam espelhos do narcisos amesquinhados no poder, sejam a população LGBTQIA+, imigrantes, minorias étnicas ou religiosas ou os direitos das mulheres. 

Em algum ponto deste processo paulatino e contínuo, a sociedade dá-se conta de que não mais vive em uma ordem democrática, sendo o autoritarismo “coroado” por algum tipo de golpe violento ou não. Como mostram os gráficos 1 e 2, adiante, todas as regiões do mundo viveram, neste século, algum período de declínio na qualidade da democracia, tendo ou não se recuperado depois.

Fonte: V-Dem

O Que Causa a Erosão Democrática?

Existem muitos fatores conjunturais e específicos de cada país para explicar a onda recente erosão democrática. No entanto, muitos pesquisadores têm se perguntado o que existe de comum nestes processos? Que fatores podem fragilizar ou proteger a democracia diante desta nova onda de ameaças. E os resultados que vêm sendo encontrados têm tudo a ver com o que discutimos aqui no Observatório. 

Por exemplo, um artigo publicado recentemente, analisou 23 períodos de erosão democrática, em 22 países diferentes, entre 1995 e 2020. A partir daí, procuraram construir um modelo estatístico de regressão a partir de um conjunto de variáveis consideradas relevantes pela literatura especializada, para estabelecer quais os principais determinantes da vulnerabilidade dos países ao tipo de declínio democrático deste século e quais aqueles que reduzem esta vulnerabilidade.  O gráfico 3 adiante resume os resultados do trabalho:

Fonte: Rau and Stokes (2025)

O artigo demonstrou que fatores mais estritamente políticos e institucionais são importantes, como o grau de polarização política, a idade da democracia e as capacidades estatais têm influência sobre a erosão democrática.

Sob essa ótica, a polarização política intensa cria um ambiente propício para que líderes autoritários explorem divisões ideológicas e partidárias. Isso porque, tais lideranças alimentam a desconfiança e o medo entre diferentes grupos impondo a população à falsa escolha entre preservar a democracia ou impedir a ascensão de um partido opositor considerado uma ameaça para a ordem. Pânico moral, desumanização da diferença, intolerância religiosa e desinformação são estratégias que conhecemos bem no Brasil. A “ditadura woke”, “vamos virar uma Venezuela”, “os imigrantes roubam nossos empregos”, “vão distribuir mamadeiras eróticas” e outras lorotas que seriam risíveis em contextos de normalidade passam a frequentar o imaginário e as relações sociais e políticas e a ditar comportamentos. Nos preparativos do golpe de 64, o clássico “medo do comunismo”,  que de fato nunca teve força política para ascender às esferas de poder no país, que fez com que diversas pessoas optem pelos autoritários ou os aceitem como mal menor.

A idade da democracia é outro fator relevante para o debate. A literatura tradicional, por muito tempo afirmou que quanto mais velha e mais consolidada é a democracia em um país, mais difícil seria a sua corrosão. Entretanto, o estudo mostrou que tal relação nem sempre é verdadeira. A expectativa que se tinha sobre a preservação da democracia americana, dado a sua idade e trajetória, não foi cumprida, uma vez que muitas vezes, o próprio sistema democrático é utilizado para corroer direitos e enfraquecer instituições. Assim, como mostra o gráfico, a longevidade da democracia tem um efeito “protetivo”, porém muitíssimo limitado, tornando até mesmo democracias estabelecidas vulneráveis ao retrocesso nesta nova onda de ataques à democracia..

As capacidades estatais são elementos chave para entender o fenômeno. O termo se refere à habilidade do estado em instrumentalizar instituições e atores para implementar políticas públicas. Nesse sentido, o estudo revelou que tal fator exerce uma influência ambígua sobre a erosão democrática. Isso porque, por um lado, instituições fortes e uma burocracia profissionalizada podem servir como barreiras contra o autoritarismo, garantindo a continuidade das políticas públicas. Entretanto, por outro, podem ser utilizados por líderes com tendências autoritárias para consolidar seu poder.

A Desigualdade é a Chave

Entretanto, a mera observação do gráfico ressalta algo fundamental. Dentre todos os fatores estudados, a magnitude da desigualdade é, juntamente com a polarização política, o fator que torna as democracias mais vulneráveis à erosão democrática. E mais, segundo os autores, é muito provável que altos índices de desigualdade social tornem o país um terreno mais fértil para a polarização política. 

Sociedades muito desiguais induzem setores importantes da população a se sentirem alijados do e desconsiderados pelas instituições políticas. Os cidadãos que se sentem abandonados pelo crescimento econômico tornam-se mais atentos à retórica anti-sistema, sem se darem conta que, quase sempre, quem se beneficia mais da erosão democráticas são justamente “os de cima”, ainda que travestidos de iconoclastas. O mesmo processo pode fazê-los perder a confiança nas instituições democráticas, incluindo os legislativos, tribunais, agências estatais e até mesmo eleições (ou urnas eletrônicas). 

Mas o  declínio da confiança faz o jogo dos líderes mais reacionários e autoritários, que podem alegar que pouco se perde – ou muito se ganha –  quando atacam as instituições fundamentais  da democracia, porque segundo sua retórica construída por anos à base de medo, ódio, ressentimento e desinformação, essas instituições já estariam profundamente corrompidas.

Sociedades muito desiguais também geram contextos políticos mais favoráveis a um tipo de polarização intensamente secularizada, um grave risco para o declínio democrático, como o gráfico 3 também deixa claro. Quando os cidadãos veem o outro partido ou posição como representante de políticas que são inaceitáveis, e quando veem eventuais adversários como pessoas moralmente desprezíveis, eles tendem a se tornar mais dispostos a tolerar ou mesmo exigir atitudes antidemocráticas de seus líderes políticos. Ou seja, a desigualdade mina diretamente a democracia e também exerce um efeito indireto sobre a erosão democrática, ao criar um contexto que aumenta a probabilidade de que a exploração de ressentimento e antagonismo seja uma estratégia bem sucedida de sectarização política e enfraquecimento democrático.

Aqui no Observatório das Desigualdades estamos torcendo pelo filme. Mas o que queremos mesmo dizer é que, com ou sem estatueta, somos gratos a “Ainda Estou Aqui” por nos lembrar dos tempos sombrios que superamos, mas principalmente do valor enorme da democracia – imperfeita, vacilante, incompleta que seja –  e de que é possível e necessário preservar a dignidade e resistir, seja buscando a verdade, seja insistindo em sorrir na foto e em recusar aos ditadores a satisfação de suas lágrimas. Nós sabemos que a defesa da democracia e o enfrentamento à desigualdade social são inseparáveis e parte da mesma luta pela emancipação humana. Para isto, ainda estamos aqui.

Referências: 

Rau, E. G., & Stokes, S. (2024). Income inequality and the erosion of democracy in the twenty-first century. Proceedings of the National Academy of Sciences, 122(1), e2422543121. https://doi.org/10.1073/pnas.2422543121

Autores: Bruno Lazzarotti e Clarice Miranda

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