O Coronavírus, responsável pela pandemia que nos assola em escala global, em princípio, não escolhe classe, raça e gênero. Ele simplesmente se espalha, entre partículas e superfícies, de um corpo para o outro. Mas sabemos que a maneira como corpos, partículas e superfícies estão dispostas no mundo variam de acordo com marcadores sociais de desigualdade, assim como variam as possibilidades de isolamento e tratamento. Com essa reflexão, o The Intercept Brasil publicou, em 17/03, a reportagem Coronavírus não é democrático: pobres, precarizados e mulheres vão sofrer mais, revelando a estreita relação entre a pandemia e a opressão social.

No Brasil, que como já sabemos é um dos países mais desiguais do mundo, o Coronavírus chega em meio a uma forte recessão econômica, com altos índices de desemprego e informalidade. Segundo dados da Pnad Contínua, a taxa média de desemprego em 2019 foi de 11,9% e a taxa de informalidade[1] atingiu seu maior nível desde 2016, chegando a 41,1%. “Para grande parte destes trabalhadores brasileiros desprotegidos, o isolamento não é uma possibilidade. Ou se fica vulnerável ao vírus, ou não se paga as contas. Parar significa uma tragédia em uma população já super-endividada. Em época de epidemia e esvaziamento dos espaços públicos, entregadores e motoristas de aplicativos precisam trabalhar em dobro para compensar. O ciclo vicioso só piora. Ao não dormirem bem, a imunidade cai. Muitos desses sujeitos encarnam a lógica neoliberal que atribui ao próprio indivíduo a responsabilidade do sucesso ou fracasso. Por sujeição ou falta de opção, eles se colocam em um regime vigilante intenso de autodestruição” (The Intercept, 17/03/20).

A pandemia também tem seu viés de raça e gênero. Entre os 10% mais pobres da população brasileira, 75% são negros, em um país em que 35 milhões de pessoas vivem sem acesso à água tratada e 100 milhões sem esgoto. A situação é ainda mais crítica para as mulheres negras: se olharmos para aquelas que são chefes de família sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos, 63% estão abaixo da linha da pobreza. São mulheres que, caso se encontrem na ocupação informal – mais instável, precária e insegura –, serão prejudicadas, conforme explicado acima, e, mesmo que empregadas formalmente, sofrerão com a suspensão das escolas e a dificuldade para encontrar onde deixar os filhos menores, entre outros percalços.

Ainda, “a ONU Mulheres tem feito diversos alertas sobre como a epidemia afeta mulheres de diferentes maneiras. Na China, há apelos de ativistas para dar importância ao fato de que a violência doméstica cresceu durante a quarentena, que coloca as pessoas em pressão psicológica extrema. Segundo a Organização Mundial da Saúde, as mulheres representam 70% dos profissionais na linha de frente de combate ao vírus, sendo vulneráveis à infecção e ao estresse” (The Intercept, 17/03/20).

Além dos efeitos imediatos gerados pela pandemia, os impactos econômicos negativos de longo prazo também serão distribuídos de forma desigual na nossa sociedade, afetando mais a renda dos mais pobres. É o que nos mostra o estudo feito pelos economistas Edson Domingues, Débora Freire e Aline Magalhães, a partir de um modelo de simulação[2] que conecta setores produtivos, famílias, Governo, setor externo e capta a distribuição da renda gerada pelos setores produtivos e as transferências governamentais às famílias no Brasil.

Segundo os economistas, com a chegada do Coronavírus e os impactos diretos e indiretos que potencialmente ocorrerão (queda da demanda, paralisação de atividades produtivas, redução de investimentos, queda no comércio mundial e redução de exportações, instabilidade nos mercados financeiros), é esperado que, neste ano, o crescimento do PIB novamente decepcione (podendo até mesmo ser negativo) e que o desemprego aumente. Uma questão importante, mas pouco destacada, é que a queda no emprego afeta indivíduos, ou famílias, de forma heterogênea.

Para avaliar como se dá essa distribuição, foram projetados os impactos de queda em 0,1% sobre o emprego e de -0,14% no PIB da economia brasileira sobre a renda disponível das famílias, por 11 classes de renda. As projeções apontam que a queda de -0,14% no PIB se relaciona a -0,11% no emprego da economia brasileira, o que teria um efeito de -0,117% na renda disponível das famílias.  Porém, mais importante que estes números é o resultado de cenários recessivos sobre os diferentes grupos de famílias, como mostra a Tabela 1.

O gráfico 1 mostra o efeito em cada classe de renda em relação ao efeito médio: enquanto as famílias mais pobres (H1) têm efeito negativo 20% maior que a média, as famílias de classes média e alta tendem a perder menos e próximo à média.

Esses resultados mostram a necessidade de se pensar ações de enfretamento focalizadas nos mais pobres, que absorvem o efeito mais pronunciado de uma redução da atividade econômica e, consequentemente, do emprego. Assim, economistas têm defendido a implementação de medidas de proteção social dos mais vulneráveis e o estímulo da demanda via investimento público, argumentando a favor de pagamentos diretos para pessoas, sem reembolso, como uma das medidas anticíclicas necessárias neste contexto de crise. Nesse sentido, Gregory Mankiw apontou que o governo americano deveria enviar cheques de US$1.000 para o alívio dos mais pobres no país e o governo de Portugal anunciou que garantiria a renda de profissionais autônomos que não possam trabalhar devido a medidas de restrições

A economista e Profa. Mônica de Bolle aponta algumas medidas que considera necessárias para o Brasil: 1) Alocação dos recursos necessários para o SUS; 2) Aumento da dotação de recursos para o Bolsa Família; 3) Renda básica universal para vulneráveis e impactados: informais, idosos vulneráveis, pessoas em trabalho precário; 4) Aumento da liquidez e recursos para pequenas e médias empresas via BNDES; 5) Investimento em infraestrutura para sustentação da demanda de forma mais imediata. Para isso, seria necessário a flexibilização da meta fiscal e suspensão temporária do teto de gastos

Assim, considerando as atuais condições de desemprego e informalidade e a possível recessão econômica impulsionada pela pandemia, os autores defendem que discussões dogmáticas a respeito do Estado x Setor Privado devem dar espaço para uma política fiscal ativa visando à contenção da crise (que pode ser ainda mais deletéria para o equilíbrio fiscal do que um aumento da dívida/PIB) e a proteção dos mais vulneráveis.

[1] Soma dos trabalhadores sem carteira, trabalhadores domésticos sem carteira, empregador sem CNPJ, conta própria sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar.

[2] Foi utilizado o modelo de simulação BRIGHT, apresentado na Tese de Doutorado da Prof. Débora Freire, tese vencedora do Prêmio BNDES de Economia em 2018.

Fontes:

Coronavírus não é democrático: pobres, precarizados e mulheres vão sofrer mais.  Disponível em: https://theintercept.com/2020/03/17/coronavirus-pandemia-opressao-social/

Desemprego cai em 16 estados em 2019, mas 20 têm informalidade recorde. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26913-desemprego-cai-em-16-estados-em-2019-mas-20-tem-informalidade-recorde

Efeitos econômicos negativos da crise do Coronavírus tendem a afetar mais a renda dos mais pobres. Disponível em: https://threadreaderapp.com/thread/1239672247247306752.html

Imagem: Freepik

Autora: Luísa Filizzola, graduanda em Administração Pública na Fundação João Pinheiro, sob a orientação de Bruno Lazzarotti, pesquisador na Fundação João Pinheiro.

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