Ser mãe no Brasil – como em todo o mundo, em diferentes medidas – é um papel desafiador, cercado por pressões sociais, estigmas e preconceitos, que sobrecarregam a figura feminina no processo de criação dos filhos e nas responsabilidades sobre a família. Desde o nascimento, sobrecai sobre a mãe a obrigação dos cuidados com a criança, de modo que elas acabam dedicando uma parcela muito maior de seu tempo a essas atividades – quase duas vezes maior em relação aos homens, de acordo com dados da PNAD Contínua 2019 [1] – apesar dos avanços a passos lentos nas últimas décadas no sentido de uma divisão mais igualitária desse papel entre os genitores.

Em situações de disputa pela guarda de uma criança, é comum que ela permaneça com a mãe, tendo em vista esse papel socialmente atribuído e assumido pelas mulheres. Nesses processos, as mulheres, carregando o peso da responsabilidade sobre as crianças e a exaustão das múltiplas jornadas de trabalho, precisam enfrentar ainda o machismo institucionalizado no judiciário brasileiro, em que os estereótipos de gênero são reforçados nas decisões e o tratamento é carregado de preconceitos. Somando-se a isso, a Lei da Alienação Parental (LAP) [2], sancionada em 2010, surge como um recurso para favorecer os pais, categorizando mães como alienadoras, instáveis psicologicamente, punindo-as, muitas vezes, por denunciar possíveis abusos dos pais ou de outras pessoas próximas às crianças. Isso é o que mostra a série de reportagens da jornalista Nayara Felizardo [3], do The Intercept Brasil, abordando como a LAP tem prejudicado mães que denunciam abusos de pais e entregando as crianças envolvidas aos possíveis abusadores. Esta Lei caracteriza a alienação parental como “interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores” (BRASIL, 2010), possibilitando a retirada da guarda da criança do genitor acusado de alienação.

A Síndrome da Alienação Parental (SAP), que inspirou a lei, é uma categoria criada pelo psiquiatra Richard Gardner para definir o comportamento de um genitor que induz, por meio da implantação de falsas memórias, a criança a romper os laços afetivos com o outro genitor [4]. A SAP, portanto, é reconhecida pelos defensores dessa ideia como uma patologia, apesar de não ser categorizada dessa forma pela Organização Mundial da Saúde (OMS) [5]. Além da falta de comprovação e de reconhecimento científico, a teoria de Gardner é conhecida por argumentar abertamente em favor da naturalização da pedofilia, afirmando que a sociedade apresenta “uma atitude exageradamente punitiva e moralista sobre os encontros sexuais entre adultos e crianças” (GARDNER, 1992 apud SOUZA, 2021). Apesar de não citar diretamente a SAP, o conceito presente na lei brasileira é indissociável de sua origem teórica (SOUZA, 2021), além de se alinhar ao modo como ela é aplicada na prática: favorecendo possíveis pais abusadores e condenando mulheres.

Revestido de uma suposta neutralidade, o ordenamento jurídico utiliza termos genéricos, como “genitor” e “alienador”, para caracterizar a pessoa que acusada de tal comportamento, como se a prática fosse desvinculada ao gênero do genitor. Contudo, na prática, transparece a ideologia patriarcal que influencia o Judiciário: as acusações são majoritariamente contra mulheres (SOUZA, 2021; HÜMMELGEN, CANGUSSÚ, 2017; FELIZARDO, 2023), com uma seletividade que “reflete uma tendência das instituições judiciárias de desvalorizar a palavra feminina, sendo retratada, não raramente, como mentirosa, vingativa e implantadora de falsas memórias, sobretudo, em casos de denúncias de abuso sexual de crianças” (SOUZA, 2021).

Felizardo (2023) analisa casos de mães que foram acusadas de alienação parental após denunciarem abusos sexuais cometidos contra seus filhos pelo outro genitor e acabaram perdendo a guarda. Além de evidenciarem o tratamento machista no Judiciário e o desfavorecimento das mulheres por estereótipos misóginos, as reportagens [3] denunciam ainda a apresentação de laudos psicológicos contratados pelos pais e a desconsideração completa dos relatos das crianças por juízes. Em um caso mais extremo, Jane Soares da Silva foi obrigada, sob ameaça de perder a guarda dos filhos por alienação parental, a permitir encontros do pai com as duas crianças, de 9 e 6 anos, semanalmente, apesar de ter denunciado diversos comportamentos abusivos do genitor contra os três, resultando no assassinato das duas crianças pelo pai em uma das visitas.

A misoginia marcante no Judiciário cria dificuldades e desigualdades para as mães no acesso a recursos para protegerem a seus filhos e a si, sendo impossibilitadas de cuidar e preservar a vida de suas crianças. Desse modo, esse caso trágico retrata a urgência de discutir o modo como a LAP está sendo aplicada no Brasil e justificando o descaso com as denúncias e os pedidos de socorro de mães e crianças abusadas.

Autoras: Anna Clara Mattos e Ariel Morelo, sob a orientação de Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

Referências
[1] Leia mais sobre desigualdades nos trabalhos domésticos e de cuidados: observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2915
[2] BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, 26 de agosto de 2010. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm>.
[3] FELIZARDO, Nayara. Em nome dos pais. The Intercept Brasil, 2023. Disponível em: <www.intercept.com.br/series/em-nome-dos-pais/>.
[4] SOUZA, Fábio Rocha de. Alienação parental e violência de gênero: uma análise sociojurídica da Lei 12.318/10. 2021. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Disponível em: <repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/17721/1/000500445-Texto%2Bcompleto-0.pdf>.
[5] Parental Alienation. World Health Organization, 2023. Disponível em: <www.who.int/standards/classifications/frequently-asked-questions/parental-alienation>.
[6] HÜMMELGEN, Isabela; CANGUSSÚ, Kauan Juliano. Estereótipos de gênero no direito das famílias: um estudo da doutrina jurídica sobre alienação parental. ENADIR, FFLCL-USP, São Paulo, 2017. Disponível em: <nadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/ISABELA%20KAUAN.pdf >.

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