Um dos chavões mais repetidos nos debates sobre políticas sociais é a analogia que indica uma suposta oposição entre “dar o peixe ou ensinar a pescar”, sempre sacada para desqualificar as políticas de assistência social em específico, mas muito frequentemente também as políticas distributivas e mesmo redistributivas em geral. Apesar de sua popularidade, é uma péssima analogia, por vários motivos. O primeiro, e óbvio, é que tem supostos totalmente irrealistas: todos podem se dedicar igualmente a aprender a pescaria, todos têm recursos iguais e suficientes para adquirir varas e iscas, todos têm igual acesso ao rio e, não menos importante, em todos os locais do rio a que as pessoas têm acesso, existem peixes suficientes para alimentar o pescador metafórico e sua família. É, portanto, uma analogia que não resiste ao mais simples exame crítico. E mais, pode-se fazer outra pergunta: e quem for ruim de pescaria? Merece morrer de fome?

 

Entretanto, o principal problema está mesmo no seu postulado central, de que seriam alternativas independentes. Em termos menos coloquiais, frequentemente a mesma preocupação se expressa no debate sobre a relevância – ou legitimidade – de políticas que enfrentem a desigualdade de resultados (renda, moradia, alimentação, consumo, terra etc.) ou se apenas a busca de maiores níveis de igualdade de oportunidades (saúde, educação, qualificação profissional e, dependendo da concepção, crédito) seriam legítimas ou desejáveis. A questão é que, na realidade, no emaranhado complexo do tecido social, desigualdade de oportunidades e desigualdade de resultados não existem de maneira tão independente que nos permitisse escolher livremente, enfrentar exitosamente uma sem nos preocuparmos com a outra. E isto ocorre nos dois sentindos. De um lado, como ilustra o gráfico 1, a mobilidade social atual depende de como era a desigualdade econômica há 25 anos. Ou seja, uma parte importante das causas da desigualdade de oportunidades atual repousa na desigualdade de resultados do passado. Em condições de forte desigualdade econômica e social, as oportunidades e os meios para alcançar melhores condições – educação, aparência, redes de contatos e relações, expectativas, informação, estoque de ativos que permita lidar com riscos entre tantos outros – também se concentram e são transmitidas para as próximas gerações. 

De outro lado, a constatação também é válida no sentido reverso. E esta é uma boa notícia. Garantir condições de vida minimamente dignas às famílias (resultados)  hoje e associá-las à oferta de outras políticas e direitos, pode ser um meio importante para interromper a transmissão da pobreza de uma geração a outra, ou seja, para ampliar a igualdade de oportunidades. Como veremos adiante, é o que mostra um estudo recente sobre os impactos de longo prazo do Programa Bolsa Família, que indica que a maioria das crianças as quais eram beneficiárias do programa em 2005 deixaram de sê-lo quando adultos e várias delas chegaram a alcançar o mercado de trabalho formal ao longo de sua vida.

Gráfico 1 – Mobilidade Social relacionada com o Coeficiente de Gini



 

Na pesquisa desenvolvida pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), “Mobilidade Social no Brasil: Uma análise da primeira geração de beneficiários do Programa Bolsa Família”, são analisados os efeitos do auxílio na realidade econômica dos atuais adultos, participantes enquanto crianças/adolescentes do programa. O PBF se enquadra dentro dos Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCRs), política comumente adotada por países em desenvolvimento (IPEA, 2007). 

Nesses programas existe a transferência de quantias em dinheiro para famílias pobres. Diz-se que a transferência é condicionada por um duplo motivo: porque se busca com ela criar condições para que as famílias tenham acesso a outras políticas e porque se requer uma ou várias contrapartidas da família beneficiada, como zelar pela frequência de seus filhos à escola (IPEA, 2007). Os PTCRs são consideradas políticas de distribuição de renda eficazes por possuírem grande capacidade de reduzir a pobreza monetária e a desigualdade de renda, ao mesmo tempo melhorar os indicadores de educação, de saúde, de poupança e de emprego do país (Imds, 2023).

O Programa Bolsa Família foi instituído em 2003 como uma maneira de unificar e expandir uma série de iniciativas fragmentadas e com cobertura limitada vigentes na época – os programas Bolsa Escola Nacional, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação – e, também, consolidar o Cadastro Único para Programas Sociais, que, atualmente, serve como uma ferramenta para identificar todas as familias de baixa renda brasileiras. De acordo com o Imds (2023), essa política pública foi arquitetada da seguinte maneira:

A gestão do programa é descentralizada e compartilhada entre a União, as Unidades Federativas e os municípios, conforme instituído pela Lei n°10.836/2004 e regulamentado pelo Decreto n°5.209/2004. A seleção das famílias é feita de forma automatizada pelo governo federal com base nas informações registradas pelos municípios no Cadastro Único. O cadastramento não implica, no entanto, em uma entrada imediata das famílias no programa e o recebimento do benefício. Os benefícios financeiros são transferidos mensalmente às famílias beneficiárias, considerando-se a renda mensal per capita da família, o número de crianças e adolescentes até dezessete anos e a existência de gestantes e nutrizes. O PBF adotou duas linhas de elegibilidade, de pobreza e extrema pobreza, que permitiam acesso a benefícios distintos no seu início.” (Imds, 2023, p.5) 

Portanto, o benefício é restrito ao público alvo da política, que são as famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza, sendo coordenado por diversas esferas estaduais. O PBF não transfere renda irrestritamente, pois as famílias possuem deveres a serem cumpridos para receberem o benefício, além das quantias serem determinadas de acordo com a situação e característica da família. O objetivo final do programa é a promoção da mobilidade de renda, ou seja, que as famílias se emancipem e não necessitem mais do auxílio. A Figura 1, apresentada pela reportagem da BBC (2023), ilustra os efeitos do programa sobre a participação atual dos beneficiários no CadÚnico:

Figura 1 – Participação atual dos beneficiários desde 2005



Fonte: BBC (2023)

No estudo do Imds (2023), como uma forma de verificar a efetividade do PBF, focou-se na população assistida pelo programa que possuía entre 7 a 16 anos em 2005, observando a realidade desses indivíduos atualmente e se eles se encontram em realidades econômicas distintas de seus responsáveis em 2005. As duas formas de analisar se ocorreu a mobilidade social foram utilizados como indicadores a saída do Cadastro Único e ter conseguido acesso ao mercado de trabalho formal.

A partir da Figura 2, é possível perceber que a maior parte desses beneficiados tinham entre 10 a 16 anos, eram do sexo masculino, negros e residiam na região nordeste. É interessante notar que entre as pessoas do grupo analisado e que não constavam mais no CadÚnico em 2019 (64%), a maioria são homens brancos e da região sul, diferindo das características dos principais beneficiários, que eram homens negros e nordestinos. A Tabela 1 também permite observar a disparidade entre os grupos de indivíduos que chegaram a sair do CadÚnico. Enquanto no sul do país 74% estão fora, na região nordeste apenas 58% encontram-se na mesma situação, uma diferença de 16%. Em relação ao sexo, 69% dos homens não se encontram na plataforma, ao mesmo tempo que apenas 55% das mulheres conseguiram o mesmo feito.

Figura 2 – Característica dos beneficiários entre 7 a 16 anos



Fonte: Imds (2023).

Tabela 1 – Participação no CadÚnico por idade, sexo, cor ou raça e região



Fonte: Imds (2023).

Em relação ao mercado de trabalho, considerando todos os beneficiários analisados no estudo, 45% foram encontrados na base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Segundo a Tabela 2, mais indivíduos que possuíam entre 10 a 16 anos (48%) em 2005 saíram da RAIS, quando comparados com os que possuíam 7 a 9 anos (38%). A diferença fica maior quando comparado os sexos e as regiões. Enquanto 51% dos homens constavam na base de dados da RAIS, apenas 39% das mulheres foram encontradas. Entre as regiões a diferença é de 30%, na região sul 60% estavam na RAIS e na região norte, com menor porcentagem, apenas 30% estavam presentes na base de dados.

Tabela 2 – Participação na RAE por idade, sexo, cor ou raça e região



Fonte: Imds (2023).

 Os autores da pesquisa concluíram que o Programa Bolsa Família contribuiu para a mobilidade social se uma parcela significativa dos beneficiários de 7 a 16 anos em 2005. Também, esses indivíduos apresentam condições socioeconômicas melhores ao acessarem o mercado formal de trabalho entre 2015 e 2019, quando comparadas às suas situações ao entrarem no programa. Além disso, eles observaram que “melhores estruturas de saúde e educação são importantes fatores para maior mobilidade social dos indivíduos nos municípios” e “decisões de migração podem representar significativas melhoras socioeconômicas, mesmo para os beneficiários do PBF” (Imds, 2023). 

Tendo os dados obtidos pela pesquisa em consideração, percebe-se que programas como o Bolsa Família são importantes para a redistribuição de renda na sociedade, principalmente devido a sua grande aceitação e custos políticos mais  baixos, quando comparado com outras soluções, como a mudança na alíquota de impostos ou o perfil tributário de um país. Também, o estudo vem como uma forma de consolidar o PBF como uma política bem sucedida, contrariando muito das críticas que foram feitas ao programa, que seria apenas um gasto de dinheiro e que as famílias apenas viviam às custas do estado, deixando de estudar ou trabalhar.

Autores: Lorena Auarek, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti.*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG. 

Referências

BBC, 2023.Bolsa Família, 20 anos: ‘Meus pais foram beneficiários, hoje sou engenheiro de software’. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2kd3vrvp8o>

Imds, 2023. Mobilidade Social no Brasil: Uma análise da primeira geração de beneficiários do Programa Bolsa Família. Disponível em: <https://imdsbrasil.org/doc/ImdsA005-2023-MobilidadeSocialNoBrasil-UmaAnaliseDaPrimeiraGeracaoDeBeneficiariosDoProgramaBolsaFamilia.pdf>

IPEA, 2007. PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA CONDICIONADA DE RENDA NO BRASIL, CHILE E MÉXICO: IMPACTOS SOBRE A DESIGUALDADE. Disponível em: <https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1293.pdf>


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