O apagamento histórico feminino é uma realidade observada em vários campos do conhecimento e áreas da vida. Esse fenômeno é tão absoluto que, atualmente, há evidências que potencialmente negam, apontando a existência de “mulheres caçadoras” a comum narrativa sobre o período pré-histórico; “a caça era uma tarefa masculina, enquanto as tarefas femininas se limitavam a plantar, colher e cuidar dos filhos”, tais como as apresentadas por Patou-Mathis (2022) e Ocobock e Lacy (2024). 

Tendo em vista o Dia Internacional das Mulheres, o Observatório das Desigualdades busca trazer histórias de algumas mulheres que, apesar de alcançarem feitos significativos, não são lembradas com frequência. Objetiva-se não apenas ressaltar as conquistas individuais dessas, mas demonstrar que uma parte da história humana é protagonizada por mulheres, incluindo mulheres negras, cujo apagamento é consequência e também instrumento de perpetuação da opressão sobre as mulheres.

Quem descobriu os cromossomos sexuais? Nettie Stevens nasceu em 1861 e recebeu o título de doutora em 1903. Era especialmente interessada na determinação do sexo biológico e fez uma descoberta muito importante enquanto estudava larvas-da-farinha. Nas células das fêmeas que produziam os óvulos, 20 grandes cromossomos eram observáveis, enquanto nas células masculinas, apenas 19 grandes cromossomos e 1 cromossomo pequeno podiam ser observados. Em 1905, a partir da análise dos acontecimentos resultantes da interação entre esse pequeno cromossomo e os maiores, Stevens publicou um trabalho em que afirmava que o cromossomo pequeno – hoje chamado de “Y” – é responsável pela determinação do sexo biológico, que ocorre no momento da fecundação. Infelizmente, durante muito tempo, os créditos para essa descoberta eram apenas de outros cientistas – homens – que fizeram observações parecidas na mesma época, tais como Thomas Hunt Morgan e Edmund B. Wilson, ignorando a contribuição de Nettie Stevens. Nessa esteira, cabe ressaltar que as teorias de seus colegas não eram perfeitas – Wilson, por exemplo, não descartou a possibilidade de determinação sexual pelo ambiente durante algum tempo e Morgan não acreditava que os genes estavam nos cromossomos, se convencendo de tal fato apenas posteriormente. (The Linda Hall Library, 2022).

O imaginário popular comumente acredita na narrativa de “homens revolucionários”, no entanto, as mulheres revolucionárias são tão fortes e relevantes quanto esses. Para exemplificar o fato em questão, é preciso mencionar que a história do Brasil é marcada pela exploração e opressão direcionadas às pessoas negras. Em 1838, o histórico de desumanidade e violência contra as pessoas negras escravizadas, com destaque para a morte de Camilo Sapateiro, vítima de tais agressões, foram as motivações para a Insurreição de 1838, também chamada de Revolta de Manoel do Congo. Essa insurreição foi uma das maiores fugas de pessoas escravizadas já registradas. (Silva; Silva, 2023). Embora o nome “Revolta de Manoel do Congo” não aponte para esse fato, a liderança desse movimento não foi apenas masculina: Manoel do Congo e Marianna Crioula eram considerados rei e rainha do quilombo que se desejava formar.  Marianna foi capturada, assim como outros envolvidos na revolta. O relato de uma testemunha, Coronel Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, registrou grande resistência aos ataques dos “donos” das pessoas escravizadas e um icônico grito de Marianna “Morrer sim, entregar não!”. (“Marianna Crioula, a rainha guerreira da insurreição de 1838”, 2020).  

Talvez, quando o assunto é física, as pessoas pensem apenas em Einstein, Heisenberg, Newton, Tesla e outros nomes brilhantes do ramo. Sem embargos a isso, existem, também, nomes femininos tão brilhantes quanto os mencionados. Vera Rubin foi uma cientista responsável pela descoberta de uma das principais evidências da existência da matéria escura. Se formou na Vassar College e queria fazer seu mestrado na Universidade de Princeton, que a rejeitou porque não aceitava mulheres. Não obstante, fez seu mestrado e doutorado em outras universidades. Além da importante descoberta quanto à matéria escura, o legado de Vera Rubin também é marcado pelo ativismo feminino e pela ocupação de espaços tradicionalmente masculinos. Nesse sentido, Rubin até mesmo cortou saias de papel para os símbolos do banheiro após ter sua entrada negada no Observatório Palomar com a justificativa de que não havia banheiros femininos. (“Conheça Vera Rubin, a astrônoma e rainha das galáxias – Espaço do Conhecimento UFMG”, [s.d.]).

Embora a proficiência esportiva seja considerada tipicamente masculina, basta a observação atenta da realidade para perceber que há mulheres inacreditavelmente habilidosas nessa área. Pierre de Coubertin – considerado o fundador dos Jogos Olímpicos modernos – certamente compartilhava da crença citada, pois acreditava que “uma mulher nos Jogos Olímpicos seria algo impraticável, desinteressante, ruim para a estética, e incorreto. Os Jogos devem ser reservados aos homens; o papel da mulher deve ser coroar os campeões”. (Confederação Brasileira do Desporto Universitário, 2021). Essa ideia se demonstrou errada diversas vezes devido à enorme quantidade de mulheres atletas com habilidades e histórias verdadeiramente impressionantes. Wilma Glodean Rudolph foi uma atleta negra que nasceu de forma prematura em 1940 em cidade que ainda vivia a segregação racial. Sua família não possuía boas condições financeiras e, durante sua infância, contraiu diversas doenças, como sarampo, pneumonia dupla, escarlatina e poliomielite. Esse último diagnóstico foi especialmente difícil para Wilma e sua família, que sempre cuidou e amou ela – em sua autobiografia, Wilma afirma lembrar mais do carinho de sua família do que da pobreza. Nem todos os hospitais aceitavam pessoas negras e o único que poderia tratá-la ficava a aproximadamente 80 km de sua casa. Apesar de todas as intempéries, com 12 anos a atleta tinha recuperado o movimento das pernas e era uma criança muito ativa. (Bagchi, 2012). Anos mais tarde, Wilma ganhou 3 medalhas de ouro olímpicas como velocista e se tornou famosa por suas impressionantes habilidades. Corretamente, usou de sua fama para lutar contra as injustiças, participando de protestos e denunciando o machismo e o racismo dentro dos esportes, embora sua atuação política tenha sido mais intensa após se aposentar. (Siber, 2018). 

Ainda no tópico dos esportes, é pertinente pontuar suas relações com a política por meio da história de uma mulheres destemida e habilidosa. Durante a ditadura militar ampliou-se, legalmente, a restrição da participação feminina nos esportes, sendo decretado “não ser permitida às mulheres a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, rugby, halterofilismo e baseball”. Nesse contexto, Irenice Maria Rodrigues, atleta negra do time “Fluminense”, em 1967, participou de uma greve noticiada apenas como uma resposta dos atletas “aos desmandos do Comitê Olímpico Brasileiro”. No mesmo ano, a atleta estava tentando participar da prova dos 800m, o que teoricamente era proibido segundo as diretrizes do Conselho Nacional de Desportos. As habilidades físicas de Irenice eram notáveis; a atleta batia sucessivamente seu recorde na corrida de 800m rasos. Decerto, Irenice era tão fascinante que Waldemar Areno, forte opositor das competições femininas de “longa distância, grande força e resistência” reconhecesse as capacidades físicas da atleta, afirmando que “(…) Irenice poderá nos obrigar a dar uma guinada de 180 graus na minha posição, porque demonstrou resistência incomum para esse tipo de percurso”. (Farias, 2018?, p.2). A postura da atleta durante sua carreira foi de resistência, frequentemente denunciando o machismo  e o racismo no meio esportivo e na sociedade brasileira, além de ter se tornado uma liderança para mulheres negras no meio do atletismo. Infelizmente, Irenice foi proibida de competir na prova dos 800m com a justificativa de ter agredido uma colega, fato que também não carece de complexidade sociológica:

Com certeza, o peso acumulado das discriminações de gênero no espaço esportivo, entre outras hierarquizações sociais, assumiu caráter mais agudo em momentos de maior repressão, quando as prerrogativas legais e institucionais encontravam-se violentamente cerceadas, causando a explosão de raivas, ressentimentos, reivindicações e confrontos recalcados. Esse foi o caso da atleta (…) (Farias, 2018, p. 4) 

Como o racismo pode afetar as crianças? Essa questão foi respondida por uma mulher e seu marido. Mammie Phipps Clark nasceu em 1917 e obteve seu mestrado e graduação na Howard University. Influenciada pelo seu trabalho em uma pré-escola para alunos negros, escreveu sua dissertação de mestrado “The Development of Consciousness of Self in Negro¹ Pre-School Children” (“O desenvolvimento da consciência de si em crianças negras na pré-escola”). Posteriormente, conheceu seu futuro marido, Kenneth Clark, e os dois passaram a pesquisar juntos sobre a auto-identificação de crianças negras. Além disso, se tornaram as duas primeiras pessoas negras a obter doutorado em psicologia na Columbia University. (American Psychological Association, [s.d.]). Nos seus estudos, consideravam a “consciência racial” como a consciência de pertencimento a um grupo e uma parte importante da autoconsciência infantil. (Clark; Clark, 1940).  Um dos seus trabalhos mais famosos, o “teste da boneca”, teve um papel de peso no caso Brown v. Board of Education of Topeka que considerou inconstitucional a segregação racial nas escolas. (Agência, 2018). Esse teste foi utilizado como prova dos efeitos nocivos à autoestima gerados pela segregação racial. (Legal Defense Fund, 2019). 

A próxima história se refere, novamente, a uma revolucionária de grande força e perseverança. Laudelina de Campos Melo nasceu em 1904. Embora a escravidão já tivesse sido formalmente abolida, nota-se a persistência das desigualdades de raça, as quais conviviam, também, com as de genêro e classe. Essas se demonstram na história de Laudelina, que “começou a trabalhar aos sete anos de idade, abandonou a escola para cuidar dos irmãos (…)”. (BBC News Brasil, 2020).  A atuação política de Laudelina é extensa e se intensificou na década de 1930, quando se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), atuou na Frente Negra Brasileira (FNB), se alistou para trabalhar como auxiliar de guerra na 2a Guerra Mundial e fundou a primeira associação de trabalhadores domésticas (os) – grupo constituído principalmente por mulheres – do Brasil. Laudelina trabalhou como empregada doméstica até a década de 1950.  Durante esse período, e, na verdade, até 2013, o trabalho realizado por esse grupo era mencionado apenas nas leis sanitárias e policiais, demonstrando o notório preconceito contra a categoria relacionado às desigualdades já mencionadas. O funcionamento de sua associação foi interrompido pelas ditaduras Vargas e Militar. Convém pontuar que embora as leis trabalhistas de maior solidez tenham surgido durante a ditadura Vargas, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nenhuma dessas contemplava o trabalho exercido por empregadas(os)  domésticas(os). Tal se justifica pela ainda persistente crença que o trabalho doméstico não constitui um trabalho de fato. A atuação de Laudelina foi vital para os direitos conquistados pelas empregadas(os) domésticas(os), embora esses tenham sido positivados pela lei após a sua morte. (BBC News Brasil, 2020).

Foram apresentadas apenas 7 mulheres nesse texto, mas o número de mulheres vítimas de apagamento histórico é muito maior – incontável, na verdade. Esse apagamento é causado pelo machismo e a ideia dele oriunda que há espaços que não pertencem às mulheres – tais como a ciência, os esportes, as revoluções e os espaços relevantes da história, no geral. Então, se cria um ciclo perverso: as mulheres têm suas contribuições apagadas em campos tidos como “masculinos”, contribuindo para a manutenção dessa categorização para tais campos e, devido a essa categorização, mulheres se afastam ou acreditam que não conseguem se inserir nesses espaços – em adição, o critério de raça também é parte desse ciclo, com a concepção de espaços tradicionalmente masculinos e, ao mesmo tempo, tradicionalmente brancos. Não obstante, os obstáculos claramente não impediram que a figura feminina contribuísse para a humanidade. Pensando nisso, é necessário questionar-se: quantos outros feitos importantes femininos existiriam se as sociedades fossem igualitárias? Quantas contribuições a mais existiriam para o bem-estar e o progresso sustentável?  Pela relevância dessas questões, é necessário se dizer que não há um dia, semana ou mês específico para lutar contra o apagamento feminino: trata-se de uma diária que só deve cessar quando a igualdade for alcançada. 

 

¹O termo “negro” é, atualmente e nos Estados Unidos, considerado uma forma ofensiva de se referir a pessoas negras, no entanto, era um termo comum na época em que a autora escreveu sua dissertação de mestrado. (Jim Crow Museum, 2010)

 

Referências:

AGÊNCIA, E. F. E. Morre Linda Brown, ícone da luta contra a segregação racial nas escolas dos EUA. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/morre-linda-brown-icone-contra-a-segregacao-racial-nas-escolas-dos-eua.ghtml>. Acesso em: 1 mar. 2024.

AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Mamie Phipps Clark, PhD, and Kenneth Clark, PhD. Disponível em: <https://www.apa.org/pi/oema/resources/ethnicity-health/psychologists/clark>. Acesso em: 1 mar. 2024.

BAGCHI, R. 50 stunning Olympic moments No35: Wilma Rudolph’s triple gold in 1960. Disponível em: <https://www.theguardian.com/sport/blog/2012/jun/01/50-stunning-olympic-moments-wilma-rudolph>. Acesso em: 1 mar. 2024.

BBC NEWS BRASIL. Quem foi Laudelina de Campos Melo, pioneira na luta por direitos de trabalhadores domésticos no Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-54507024>. Acesso em: 1 mar. 2024.
CLARK, K. B.; CLARK, M. K. Skin color as a factor in racial identification of negro preschool children. The Journal of social psychology, v. 11, n. 1, p. 159–169, 1940.

CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DO DESPORTO UNIVERSITÁRIO. Mulheres no esporte – Participação feminina em Jogos Olímpicos. Disponível em: <https://www.cbdu.org.br/mulheres-esporte-participacao-feminina-jogos-olimpicos/>. Acesso em: 1 mar. 2024.

Conheça Vera Rubin, a astrônoma e rainha das galáxias – Espaço do Conhecimento UFMG. Disponível em: <https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/vera-rubin/>. Acesso em: 1 mar. 2024.

FARIAS, Cláudia Maria de. “Irenice Maria Rodrigues, o esquecimento de uma atleta olímpica brasileira”. Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: História e Parcerias. Disponível em: <https://www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1529788364_ARQUIVO_paperAnpuh2018.pdf>. Acesso em: 1 mar. 2024.

JIM CROW MUSEUM. When did the word negro become socially unacceptable? – 2010 – question of the month – Jim crow museum. Disponível em: <https://jimcrowmuseum.ferris.edu/question/2010/october.htm>. Acesso em: 1 mar. 2024.

LEGAL DEFENSE FUND. The significance of “the Doll Test”. Disponível em: <https://www.naacpldf.org/brown-vs-board/significance-doll-test/>. Acesso em: 1 mar. 2024.

Marianna Crioula, a rainha guerreira da insurreição de 1838. Revista Vale do Café, abr. 2020. Disponível em: <https://www.google.com/url?q=https://revistavaledocafe.com.br/edicoes-anteriores-noticias&sa=D&source=docs&ust=1709325060264635&usg=AOvVaw2q5tPSrnRDZ62q6vv8lUIK>. Acesso em: 1 mar. 2024.

OCOBOCK, C.; LACY, S. Woman the hunter: The physiological evidence. American anthropologist, v. 126, n. 1, p. 7–18, 2024.

PATOU-MATHIS, M. O homem pré-histórico também é mulher. [s.l.] Rosa dos Tempos, 2022.

SIBER, K. How Wilma Rudolph became the world’s fastest woman. Disponível em: <https://www.outsideonline.com/2317131/wilma-rudolph-worlds-fastest-woman>. Acesso em: 1 mar. 2024.
SILVA, É. L. DE S.; SILVA, T. M. G. (Des)velando heroínas negras sob a ótica do feminismo negro. Verbo de Minas, p. 64–87, 2023.

THE LINDA HALL LIBRARY. Nettie Maria Stevens – Linda hall library. Disponível em: <https://www.lindahall.org/about/news/scientist-of-the-day/nettie-maria-stevens/>. Acesso em: 1 mar. 2024.

 

Autora: Alessandra Von Döllinger, sob a orientação de Bruno Lazzarotti. 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG.

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