Muito se discute sobre o Bolsa Família, e até hoje há questionamentos acerca do “merecimento” daqueles que o recebem ou sobre as “contrapartidas” que deveriam ser exigidas dos beneficiários. No entanto, existe um “benefício” ainda mais elevado, amplamente aceito e raramente  questionado: a Bolsa Homem Branco. Trata-se de um bônus permanente, superior ao valor do Bolsa Família, sem exigências ou contrapartidas, garantido unicamente pela condição de um indivíduo nascer homem e branco. Convidamos você a entender como as desigualdades estruturais se entrelaçam na sociedade, especificamente no contexto de Minas Gerais, e como elas possibilitam a existência desse “bônus”. A análise completa é apresentada na nova nota técnica do Observatório das Desigualdades, que pode ser lida aqui (https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2024/11/Nota-tecnica-6-2.pdf)

Desigualdades Interseccionais 

 

A desigualdade interseccional, termo que descreve os efeitos combinados de classe, gênero e raça sobre as vantagens e desvantagens das pessoas em diversos campos da vida social (Hirata, 2014), é uma realidade amplamente documentada no Brasil, especialmente no mercado de trabalho. Essa desigualdade não se manifesta de forma isolada, mas é resultado da interação entre diferentes vetores de exclusão, como o racismo e o sexismo, que operam simultaneamente, ainda que por mecanismos distintos em diferentes esferas da vida social e econômica, para marginalizar certos grupos. No contexto brasileiro, mulheres, negros e, em ainda maior intensidade, mulheres negras, enfrentam obstáculos em várias etapas da inclusão e posicionamento no mercado de trabalho (Costa et al, 2005).

Em primeiro lugar, a estrutura patriarcal que prevalece na sociedade brasileira impõe um fardo desproporcional sobre as mulheres, especialmente nas tarefas de cuidado (com filhos, pessoas com deficiência, idosos dependentes) e nas responsabilidades domésticas. Esse papel tradicional da mulher tem implicações profundas nas oportunidades e na participação delas no mercado de trabalho. Além disso, a discriminação racial ainda é um fator determinante para os negros no Brasil, que enfrentam barreiras educacionais, segregação urbana e uma rede de contatos mais distante das melhores posições no mercado de trabalho. A discriminação racial manifesta-se tanto nas demandas dos empregadores, que bloqueiam oportunidades para negros, quanto na oferta, onde as barreiras sociais e educacionais limitam o acesso dos candidatos de grupos minoritários às melhores oportunidades (Cerqueira e Coelho, 2017).

Quando esses vetores de exclusão se combinam, como no caso das mulheres negras, a desigualdade se intensifica. Mulheres pobres, por exemplo, têm mais dificuldades para conciliar as jornadas de trabalho e os cuidados domésticos, pois, na ausência de políticas públicas de cuidado, precisam assumir essas responsabilidades sozinhas, ao contrário de mulheres de classes médias e altas, que podem contratar serviços de cuidados (geralmente prestados por outras mulheres mais pobres). As mulheres negras, nesse contexto, enfrentam uma tripla desvantagem, estando no segmento social com as piores condições (Silva, 2013). Mulheres e negros apresentam, portanto, participação menor no mercado de trabalho, têm acesso a postos de trabalho de pior qualidade, são discriminados no recrutamento, têm menos oportunidades para assumir posições de liderança e se defrontam com um mercado de trabalho muito segregado, limitando os setores aos quais têm acesso. Assim, o perfil de ocupação de postos de trabalho, setores e posições de liderança no Brasil já reflete essa longa cadeia de vantagens que homens brancos desfrutam no mercado de trabalho.

No entanto, a nota técnica “A “Bolsa Homem Branco”: uma Análise do Efeito de Ser Homem Branco sobre a Renda em Minas Gerais, a partir de dados da PNADc de 2023” teve um propósito ainda mais específico e delimitado: explorar, de forma analítica, um fenômeno que chamamos ironicamente “bolsa homem branco”, que se refere ao ganho médio adicional de renda que um homem branco recebe no mercado de trabalho, em comparação com outros grupos demográficos, quando todas as variáveis controláveis (como escolaridade, idade, situação no domicílio, setor de trabalho e posição na ocupação e jornada de trabalho) são mantidas constantes. Ou seja, estimar o privilégio líquido de renda de que os homens brancos desfrutam em relação aos outros grupos, mesmo quando em condições de trabalho semelhantes. Através de uma abordagem quantitativa, que combina Propensity Score Matching e regressão linear, a partir de dados da PNADc de 2023, a nota buscou estimar quanto a mais um homem branco recebe mensalmente em Minas Gerais, considerando a sua inserção no mercado de trabalho e as condições socioeconômicas semelhantes às de outros grupos.

Contudo, a renda do trabalho não é o único fator que compõe o rendimento de uma pessoa. Além da renda do trabalho, existem transferências públicas, pensões, aposentadorias e outras fontes de rendimento, como alugueis e investimentos. Além disso, nem sempre o rendimento de uma pessoa é usufruído exclusivamente por ela, uma vez que na unidade familiar há uma redistribuição de rendimentos, onde os membros da família compartilham os custos e benefícios. Por isso, o estudo também considera a Renda Domiciliar Per Capita (RDPC) para avaliar se, mesmo levando em conta essa redistribuição de rendimentos dentro das famílias, a sociedade mineira ainda paga uma “bolsa homem branco”.

A metodologia adotada neste estudo inclui um procedimento de matching via Propensity Score, seguido de uma regressão linear para estimar o efeito de ser homem branco, tanto sobre a renda do trabalho quanto sobre a RDPC. A análise também inclui exercícios contrafactuais, simulando como ficariam a desigualdade (medida pelo índice de Gini), a pobreza e a pobreza extrema, e os rendimentos de diferentes segmentos de gênero e raça, se todos fossem tratados como homens brancos, ou seja, se a “bolsa homem branco” fosse universalizada. Este exercício, embora hipotético, visa tornar mais explícitas as profundas desigualdades de gênero e raça nos rendimentos e mostrar como a combinação desses fatores contribui para a acentuação da desigualdade de renda em Minas Gerais.

Metodologia do Estudo 

O estudo analisou a vantagem líquida de ser homem branco na renda do trabalho e na renda domiciliar per capita (RDPC), com base nos dados da PNADC 2023. Com isso, a metodologia adotada foi dividida em três etapas principais sendo elas: o Propensity Score Matching (PSM), a regressão linear e um exercício contrafactual. 

O primeiro passo da metodologia foi simular um experimento utilizando o método Propensity Score Matching (PSM), que basicamente cria dois grupos comparáveis para análise. O PSM busca identificar, entre os trabalhadores que não são homens brancos, aqueles que possuem características semelhantes aos homens brancos em aspectos como idade, escolaridade, setor de trabalho, carga horária, entre outros. Ou seja, ele seleciona trabalhadores que, mesmo não sendo homens brancos, têm perfis próximos em várias dimensões. Isso permite criar um “grupo de controle”, que é muito parecido com o “grupo de tratamento” (os homens brancos) em termos de características relevantes. O resultado é um banco de dados onde cada homem branco é emparelhado com um indivíduo do outro grupo, mas com perfil semelhante, permitindo uma análise mais confiável e efetiva. 

Na segunda etapa, foi realizada uma regressão linear utilizando o banco de dados pareado, mantendo o controle sobre as mesmas variáveis consideradas no pareamento. A regressão linear é uma técnica estatística que busca identificar a relação entre uma variável dependente (neste caso, a renda do trabalho) e uma ou mais variáveis independentes (como idade, escolaridade, setor de atividade, etc.). Esse método permitiu calcular o impacto direto de ser homem branco sobre a renda do trabalho, ou seja, a “Bolsa Homem Branco”, estimando a vantagem salarial atribuída exclusivamente à identidade racial, mesmo depois de controlar esses outros fatores. Assim, foi possível isolar a diferença salarial que pode ser atribuída unicamente à condição de ser homem branco.

Por fim, o estudo realizou um exercício contrafactual para simular o que aconteceria caso todos os trabalhadores fossem tratados como homens brancos, recebendo o mesmo benefício salarial. Duas abordagens foram adotadas: a primeira somou diretamente o valor às rendas dos indivíduos que não são homens brancos e a segunda utilizou o modelo de regressão para prever novos rendimentos, considerando como seriam os salários desses trabalhadores caso compartilhassem as mesmas condições atribuídas aos homens brancos (no presente texto, exploraremos apenas os resultados da segunda abordagem). Ambas as estratégias foram aplicadas para avaliar os impactos na renda média, na distribuição de renda (índice de Gini) e, no caso da Renda Domiciliar Per Capita (RDPC), nos índices de pobreza e extrema pobreza. Para este último, foram consideradas as linhas de extrema pobreza (RDPC igual ou inferior a ¼ do salário mínimo) e pobreza (RDPC entre ¼ e ½ do salário mínimo). Os detalhes técnicos, resultados completos e tabelas podem ser encontrados nos apêndices da nota técnica.

 Estimando o valor da “Bolsa Homem Branco”

 Seguindo a metodologia descrita acima, o trabalho apurou que em Minas Gerais, em 2023, homens brancos receberam no trabalho, em média, R$ 742,98 a mais que outros trabalhadores, mesmo quando comparados a pessoas com características similares, como idade, grau de instrução, carga horária, setor de ocupação e localização (urbana ou rural). Esse valor equivale a uma espécie de “bolsa mensal” paga pelo mercado de trabalho aos homens brancos, superior ao benefício médio do Bolsa Família no estado, que foi de R$670,36 no mesmo ano.

Pode-se argumentar que essa diferença de R$742,98 pode ser influenciada por outros fatores não analisados, como habilidades ou atitudes valorizadas no mercado de trabalho, mas que não são captadas pelos dados disponíveis. Isso significa que parte dessa desigualdade pode estar relacionada a características individuais ou do posto de trabalho difíceis de medir. No entanto, é importante destacar que, primeiro, é necessário investigar mais profundamente como esses fatores contribuem para a perpetuação das desigualdades no mercado de trabalho. Em segundo lugar, porém, o tamanho da diferença observada, aliado ao controle de diversas variáveis, torna muito mais provável que uma parte significativa dessa desigualdade seja explicada por mecanismos já conhecidos de discriminação racial e de gênero. Assim, mesmo que outros fatores também tenham influência, a discriminação desempenha um papel central nesse cenário. 

E se a “Bolsa Homem Branco” fosse universalizada? Um exercício contrafactual

 A metodologia descrita permitiu, por meio de um exercício contrafactual, estimar o que aconteceria com os rendimentos do trabalho se este “bônus”  que os homens brancos recebem se estendesse a todos os trabalhadores, alcançando as mulheres e negros? Ou seja, calcula como a universalização da “Bolsa Homem Branco” afetaria a distribuição de rendimentos do trabalho no estado de Minas Gerais. Os resultados indicam que, caso os homens brancos tivessem seus rendimentos estendidos para todos os ocupados, a renda média do trabalho aumentaria 18,96% dependendo da metodologia utilizada para a estimativa. Além disso, a universalização desse benefício reduziria a desigualdade da renda do trabalho, com o Índice de Gini apresentando uma redução de 13,64% . Isso significa que uma parte significativa da desigualdade de rendimentos no mercado de trabalho é determinada pela combinação de raça e gênero.

Fonte: elaboração própria a partir da PNAD/C (IBGE)

Efeitos da universalização sobre a desigualdade de rendimento entre os distintos grupos

O estudo também avalia o impacto hipotético da universalização da “Bolsa Homem Branco” para diferentes grupos. O gráfico demonstrou que a maior elevação relativa da renda ocorreria entre as mulheres negras, que veriam um aumento de 47% em seus rendimentos. Já as mulheres brancas teriam um aumento de 26%, enquanto os homens negros veriam um acréscimo de 18% em sua renda. Contudo, a análise deixa claro que, mesmo com esses aumentos, a disparidade permanece. As mulheres brancas atingiriam a mesma renda que os homens brancos, mas as mulheres negras e os homens negros continuariam com rendimentos muito abaixo dos dos homens brancos. Isso reflete a complexidade das desigualdades no mercado de trabalho e como o racismo e o sexismo estruturam o acesso a melhores oportunidades.

Desigualdade de renda do trabalho entre sexo e raça

Fonte: elaboração própria a partir da PNAD/C (IBGE)

Estimando a “Bolsa Homem Branco” da Renda Domiciliar Per Capita (RDPC) 

Para ampliar a análise, considerou-se também a Renda Domiciliar Per Capita (RDPC), que leva em conta todos os rendimentos de todos os membros da família, divididos pelo número de habitantes do domicílio. A RDPC é uma medida mais abrangente, pois leva incorpora a) o fato de existem outras rendas que não a do trabalho, distribuídas por mecanismos distintos e b) o papel da família como instituição de proteção e redistribuição de rendimentos e bem-estar (o que não implica negligenciar desigualdades e opressões intrafamiliares). Mesmo levando estes elementos em consideração, pode-se perceber que o privilégio dos homens brancos persiste. O valor encontrado  foi de R$ 384,65, o que indica que que, considerando indivíduos que têm a mesma posição no domicílio, estão na mesma situação domiciliar (Rural ou Urbana), têm idades próximas, mesmo tipo de ocupação no mesmo setor da economia, têm jornada semanal e nível de instrução semelhantes, os homens brancos têm uma renda  R$ 384,65 superior à dos outros indivíduos. Assim, o estudo revelou que a RDPC média dos homens brancos é 21% superior à de outros cidadãos. Caso todos os indivíduos tivessem os mesmos rendimentos dos homens brancos, a desigualdade de renda no estado poderia ser reduzida em 14,9%. Essa mudança significaria que o Índice de Gini de Minas Gerais cairia de 0,47 para 0,40, o que representa uma redução significativa na desigualdade.

 Variações no Índice de Gini em Minas Gerais

Fonte: elaboração própria a partir da PNAD/C (IBGE)

Efeitos sobre a  Pobreza e Extrema Pobreza

Os efeitos mais dramáticos da universalização seriam observados na pobreza e extrema pobreza. Se a “Bolsa Homem Branco” fosse universalizada, o número de pessoas em situação de extrema pobreza no estado de Minas Gerais cairia em 75,76%, de 1.061.821 para 256.005 pessoas, fazendo com que a taxa de extrema pobreza no estado passasse para apenas 1,19%. A pobreza também seria drasticamente reduzida, com o número de pobres caindo de 4,5 milhões para 887 mil pessoas. Isso resultaria em uma queda na taxa de pobreza de 20,86% para 4,13%. Esses dados indicam que a simples eliminação das desigualdades de raça e gênero na distribuição de rendimentos teria um impacto transformador na redução da pobreza em Minas Gerais. 

Impacto Específico nas Mulheres e Negros

Um ponto crucial da pesquisa é a análise de como a universalização da “Bolsa Homem Branco” afetaria a RDPC das diferentes categorias de gênero e raça. O estudo revelou que, enquanto a RDPC das mulheres brancas ultrapassaria a dos homens brancos em 3%, as mulheres negras seriam as mais beneficiadas, com um aumento de 47% em sua RDPC, passando de R$ 1.420,92 para R$ 2.126,75. Porém, mesmo com esse aumento significativo, as mulheres negras continuariam a ganhar, no máximo, 88% da renda dos homens brancos.

Para os homens negros, a RDPC continuaria abaixo dos 80% da renda dos homens brancos, destacando que, mesmo em um cenário onde a vantagem econômica dos homens brancos fosse universalizada, os grupos mais marginalizados – mulheres negras e homens negros – permaneceriam em uma posição de desvantagem.

 Variações na Renda Domiciliar Per Capita Por Grupos

                                                          

Fonte: elaboração própria a partir da PNAD/C (IBGE)

 

Conclusões

 

A análise aqui sintetizada se propõe, de maneira provocativa, a explorar as profundas desigualdades interseccionais que atravessam a sociedade mineira, do ponto de vista exclusivo dos rendimentos. Utilizando dados pareados e metodologias como o Propensity Score Matching e regressões lineares para criar exercícios contrafactuais, identificamos o expressivo privilégio econômico concedido a homens brancos no mercado de trabalho, revelando que eles recebem, em média, R$ 742,98 a mais que outros grupos, mesmo em condições equivalentes. No que tange a RDPC, o valor encontrado pelo estudo foi de    R$384, o que indica que que, considerando indivíduos que têm a mesma posição no domicílio, estão na mesma situação domiciliar (Rural ou Urbana), têm idades próximas, mesmo tipo de ocupação no mesmo setor da economia, têm jornada semanal e nível de instrução semelhantes, os homens brancos têm uma renda  R$ 384,65 superior à dos outros indivíduos. Além de quantificar esse benefício, a nota discute como a universalização desse acréscimo poderia impactar positivamente a qualidade de vida de toda a população, com aumentos significativos na renda média e reduções na desigualdade e nos índices de pobreza. Ao mesmo tempo, evidencia que o enfrentamento dessas disparidades exige uma abordagem interseccional que considere o entrelaçamento de raça, gênero e classe na perpetuação das desigualdades. Para compreender a fundo os detalhes metodológicos, os resultados e as reflexões propostas, bem como as muitas limitações e pressupostos de um exercício como este, recomendamos a leitura da nota na íntegra, que pode ser lida aqui (https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2024/11/Nota-tecnica-6-2.pdf)

 

Beatriz Acácio 

Discente do curso de Administração Pública da Fundação João Pinheiro e estagiária do Observatório das Desigualdades 

 

Bruno Lazzarotti Diniz Costa

Professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro.  Coordenador do Observatório das Desigualdades. Doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

Clarice Miranda do Amaral

Discente do curso de Administração Pública da Fundação João Pinheiro e extensionista do Observatório das Desigualdades.

 

Lucas Augusto de Lima Brandão

 

É bacharel em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. Colaborador no Observatório das Desigualdades

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