A simbologia da Justiça remete sempre à imagem de uma mulher (frequentemente a deusa grega Têmis) vendada e portando uma balança em uma das mãos e uma espada na outra. A idéia é que a Justiça deve ser impessoal (por isto a venda), equilibrada e proporcional (balança) na imposição de decisões e castigos (a espada). Entretanto, a observação da atuação da justiça brasileira na repressão ao tráfico de drogas mostra que, ao manejar sua espada, à Têmis brasileira faltam a venda e a balança. É o que fica claro na nota técnica, publicada pelo IPEA em outubro de 2023, que analisa o perfil racial dos réus processados por tráfico de drogas nos tribunais estaduais de justiça comum brasileiros [1]. A nota elucida aspectos da desigualdade racial, especialmente aquela perpetrada pelos instrumentos jurídicos através dos mecanismos e instituições que, em tese, deveriam trabalhar em prol da redução de desigualdades. Comparando o perfil racial da população com aquele encontrado entre os réus em diferentes contextos, como prisão em flagrante, motivação e local de abordagem, por exemplo, um padrão já conhecido – mas que não deixa de assustar – fica nítido nos gráficos divulgados. Aqui, discutiremos alguns desses dados.
Em aspectos gerais, sem considerar as lacunas das bases de dados por falta de preenchimento das informações, os réus brancos correspondem a 21% dos casos contra 46% de casos com réus negros. Ou seja, há mais do que o dobro de chance de encontrar réus negros do que brancos.
As autoras da NT compararam esses dados com o perfil racial da população brasileira por grande região. Em todos os casos a proporção de pessoas negras processadas por tráfico é maior que a proporção entre a população total. A super-representação de pessoas negras nesses processos, contra a sub-representação de pessoas brancas, deixa nítido o papel do estado no encarceramento em massa de apenas um dos grupos.
Mais à frente, as autoras discutem as proporções de réus a partir de características como sexo biológico, idade e escolaridade. Em primeiro lugar, é importante notar que os homens correspondem à grande maioria dos réus, com proporção de 85,9% do total. Na desagregação por sexo e raça, as proporções são as seguintes: 61% de homens negros, 27% de homens brancos, 7% de mulheres negras e 5% de mulheres brancas. Contudo, a violência de gênero no sistema carcerário brasileiro se manifesta de formas que não as quantitativas. Em estudo etnográfico publicado por Anne Caroline Braz em 2020 [2], a autora discute a orientação e ótica masculinas como norteadoras das ações de instituições de controle, que se desdobram em desigualdades no atendimento à saúde e quanto ao direito sexual e reprodutivo de mulheres encarceradas no complexo penal Dr. João Chaves, no Rio Grande do Norte. A falta de produtos de higiene fundamentais à dignidade menstrual dessas mulheres é um dos exemplos que ilustra essas desigualdades. Outra questão levantada pela autora é a da solidão vivida por essas mulheres, que recebem menos visitas do que os homens encarcerados e são isoladas do convívio familiar e do cuidado de seus filhos, colocando-as em situação de abandono com graves consequências à sua saúde física e psicológica. O assunto teve grande repercussão de mídia em 2020, quando um episódio da série “VIOLÊNCIA ENCARCERADA”, do jornal O Globo, exibiu relatos de mulheres presas entrevistadas por Dráuzio Varella [3]. A especialista no tema Julita Lemgruber explica que as mulheres encarceradas são punidas duplamente: primeiro, na esfera jurídico-penal, em razão dos crimes que cometeram, e; em segundo lugar, na esfera familiar, por abandonarem os trabalhos de cuidado e de manutenção da vida familiar quando são presas. Por este motivo, afirma o documentário, são punidas com mais rigor e abandonadas por seus entes.
A idade e a escolaridade dos réus também chamam a atenção: 72% dos réus processados por tráfico de drogas tinha até 30 anos na data da publicação da NT e apenas 2% deles já frequentou o ensino superior. Em resumo, a maioria deles é composta de jovens e de baixa escolaridade. As autoras ainda assinalam que há 2,5 vezes maior chance de encontrar jovens negros do que jovens brancos entre os processados. Ou seja, as juventudes negras são as maiores atingidas pelo encarceramento no Brasil. Mais da metade (54%) é analfabeta ou não concluiu o ensino fundamental.
Comparando os dados acima com o capítulo “Desigualdade e Segurança Pública” do documento “Minas pela Igualdade”, lançado em 2022 pelo Observatório das Desigualdades, percebemos o lugar das juventudes na violência perpetrada pelas instituições de segurança pública: o resultado de um policiamento direcionado pela “guerras às drogas” é a produção de uma maioria de vítima de adolescentes e jovens: em Minas Gerais, 15,1% das vítimas são menores de idade, com até 17 anos, e 42,2% têm entre 18 e 24 anos, somando 57,3% das vítimas.O documento propõe, entre outras medidas de redução das desigualdades no âmbito da segurança pública, o enfrentamento ao atual modelo de encarceramento adotado no Brasil, pois sua faceta ideologizada alimenta uma atuação estatal pautada pela arbitrariedade e seletividade, vitimando grupos sociais já vulnerabilizados.
O Observatório já havia trazido o debate da chamada “fundada suspeita”, instrumento utilizado pela força policial para realizar abordagens e/ou disparos. O estudo conduzido por Sinhoretto em 2014 [4] revelou que os agentes da polícia militar consideram suspeitos indivíduos jovens e que apresentam modos de se vestir, andar e falar que remetem a aspectos da cultura negra periférica. Apesar de negarem haver a filtragem racial, os dados divulgados na NT divulgada pelo Ipea e centenas de outros estudos estatísticos sobre o tema não deixam dúvidas sobre os critérios de raça utilizado em abordagens violentas, resultando na vitimização de jovens negros que sequer ofereciam perigo aos agentes: entre mortos e feridos decorrentes das intervenções policiais, 65,4% não dispararam arma de fogo e 36% estavam desarmados [5].
O tema foi pauta do STF na última semana (11/04) durante o julgamento de um homem negro por tráfico de drogas – ele alegava que sua condenação havia sido pautada por critérios raciais [6]. Preso em flagrante com apenas 1,53 gramas de cocaína, o boletim de ocorrência indica que os policiais afirmam que “avistaram um indivíduo de cor negra em cena típica do tráfico de drogas”. O homem foi indiciado por tráfico, apesar de portar quantidade muito inferior à que usualmente é atribuída ao tráfico. Os ministros afirmam que é ilegal o perfilamento racial em abordagens policiais, mas consideraram que não foi o caso do processo em questão. Apenas o ministro Luiz Fux concorda com o réu, em razão da menção à cor no boletim de ocorrência.
É importante dizer que o STF, a grande representação da Têmis à brasileira, só teve um ministro negro ao longo de toda a sua história. Os Tribunais Superiores seguem um padrão semelhante: 89,9% são brancos em sua composição.
A NT também traz dados quanto à dinâmica seletiva da abordagem policial: a proporção de réus negros presos em flagrante em decorrência de patrulhamento com base em comportamento suspeito e em via pública foi significativamente superior à proporção de réus negros processados em geral, o que sugere o viés racial está presente na motivação para as abordagens. A proporção de entrada em domicílios sem mandato judicial também é maior em casas de pessoas negras.
A NT reforça o que já sabíamos, mas não deixa de ser pertinente lembrar: a política de drogas, as abordagens policiais e o encarceramento são aspectos da segurança pública que continuam a perpetuar a desigualdade racial no Brasil. O mito da igualdade racial brasileira, tão desmentido por pesquisas científicas mas tão presente no discurso dos cidadãos favorece uma narrativa que inviabiliza o combate ao racismo e ao encarceramento de jovens negros. A segurança pública do país vem sendo historicamente orientada por uma lógica militarizada e repressiva, que em nada contribui para a proteção de juventudes em situação de vulnerabilidade social. Uma outra política de drogas é possível, e deve ser pautada no combate ao racismo e à violência policial.
Autora: Ariel Morelo, sob orientação do professor Bruno Lazzarotti
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG
Referências:
[1] https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12439/1/NT_61_Diest_Questao_Racial.pdf
[2] BRAZ, Anne Caroline. A solidão das mulheres no sistema carcerário: uma questão estrutural. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=IvFjMTzHjgM
[4] SINHORETTO; BATITUCCI; MOTA; SCHLITTLER; SILVESTRE; MORAIS; GODINHO; SILVA; ARAGON; RAMOS; ALMEIDA; MACIE; SILVA. Filtragem racial na seleção de suspeitos: segurança pública e relações raciais. In: Isabel Seixas de Figueiredo; Gustavo Camilo Baptista; Cristiane do Socorro Loureiro Lima. (Org.). Coleção Pensando a Segurança Pública – Volume 5. 1ed.Brasilia: Ministério da Justiça / Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2014, v. 1, p. 121-158.
[5] FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Pesquisa Letalidade e Vitimização Policial em Minas Gerais – 2013/2018: dinâmica das ocorrências e perfil dos envolvidos. Minas Gerais, 2021.
Excelente análise. Sugiro que seja enviada a todos os deputados federais, que vão começar a discutir a PEC das drogas, já aprovada no Senado, que criminaliza o porte de qualquer quantidade de drogas.