O Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março, não se constitui apenas como uma data comemorativa, mas principalmente como um importante símbolo da luta feminina na garantia de direitos  equitativos em relação aos homens. Nesse sentido, o Observatório das Desigualdades traz a perspectiva do tratamento desigual recebido pelas mulheres no cuidado médico, a fim de promover a reflexão sobre essa questão de grande impacto na vida das mulheres, que é, não obstante, negligenciada na mesma intensidade. A desigualdade no tratamento médico se concretiza por meio de mecanismos de gaslighting ou simplesmente pela recusa de tratamento adequado. Dessa forma, dois frequentes cenários em que se observa discriminação de gênero no âmbito médico são o atendimento de casos de violência doméstica e no processo de tornar-se mãe, assuntos que carecem de grande atenção na conjuntura atual. No post a seguir, os termos “homem” e “mulher” se referem a pessoas cisgênero. 

 

O gaslighting como ferramenta de discriminação médica

O termo gaslighting é utilizado para nomear a postura dominadora de um abusador ao manipular e banalizar informações fornecidas pela sua vítima, distorcendo sua assimilação da realidade. Dessa forma, esse modo de opressão pode se dar por meio do uso de frases como “você enlouqueceu” ou “você não sabe do que fala”. Nessa lógica, a prática em questão é muito presente no tratamento médico fornecido às mulheres, sendo a principal causa o gênero da paciente.

 

Gráfico 1 – Percepção de 2000 mulheres americanas acerca das causas do gaslighting médico sofrido por elas

Fonte: Mira Fertility, 2023. Nota: 28% das respondentes afirmaram que a questão de gênero era a maior causa do problema (tradução nossa)

 

No âmbito da saúde, Eldebrando e Pinto (2022) afirmam que o objetivo dessa prática seria uma tentativa de autoafirmação do profissional da saúde em relação a si mesmo, impedindo que a mulher que está sendo atendida possa ameaçar sua autoridade profissional, abalada pelo receio de não saber lidar com a demanda. Dessa maneira, muitas pacientes recebem diagnósticos errôneos e a carga emocional de uma experiência médica no mínimo constrangedora. 

Ainda, pode-se observar que, uma vez que há uma defasagem de conhecimento médico acerca da fisiologia feminina, as mulheres ficam mais propensas a serem diagnosticadas de maneira equivocada e mandadas para casa durante um ataque cardíaco, por exemplo, haja vista que os sintomas são muito distintos dos sofridos por homens (ELDEBRANDO; PINTO, 2022). Ademais, com a ausência de intervenções efetivas, esse ciclo de negligência tende a perpetuar a barreira entre médico e paciente, uma vez que há a resistência em colocar a saúde das mulheres em foco nos estudos médicos. 

Sobre os prejuízos que isso traz para as mulheres, é importante ressaltar o adoecimento mental da vítima, uma vez que essa postura gera inseguranças em relação à autopercepção sobre seus sentimentos. Nesse sentido, uma carga a mais é atribuída à mulher, uma vez que ela precisa se preocupar com a validação de seus próprios sentimentos e sintomas ao estabelecer limites em sua consulta médica. Em outras palavras, as mulheres não precisam se preocupar apenas com explicar seus sintomas, por exemplo, mas também com fazer com que essa explicação seja tratada seriamente pelo profissional com que se consultam.

 

Atendimentos de casos de violência doméstica

A violência doméstica é um assunto amplamente discutido na atualidade. Infelizmente, os avanços conquistados na direção de sua erradicação são pequenos em comparação à complexidade da problemática. Segundo dados coletados pela 10ª Pesquisa DataSenado 2023, 30% das mulheres brasileiras relataram já ter sofrido algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por um homem. Ainda, a pesquisa faz um recorte de renda na medida em que se afirma que as chances de uma mulher ter sofrido agressão em algum momento de sua trajetória é inversamente proporcional à sua condição financeira. 

Sob essa perspectiva, Terra (2017) afirma que a violência doméstica de gênero configura um problema de saúde pública que se encontra historicamente invisível no âmbito dos serviços de saúde. Nesse sentido, as mulheres em condições de violência são geralmente classificadas como casos médicos impraticáveis, uma vez que queixam de variados problemas e dores inexatas. Dessa maneira, suas falas a respeito da violência a que são vítimas frequentemente recebem retornos na condição de conselhos dotados de moralismos e preconceito, e não na forma de intermediações em saúde (SCHRAIBER, 2012 apud TERRA, 2017). O Gráfico 2 mostra como muitos profissionais dos serviços de saúde não possuem a segurança de que conseguem lidar com as mulheres em questão, evidenciando o despreparo do cuidado clínico no âmbito da violência doméstica.

 

Gráfico 2 – Atuação de enfermeiros em relação a casos de violência doméstica

Fonte: Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, 2021

 

Discriminação de gênero como fundamento da violência obstétrica

A violência obstétrica, na forma de violência de gênero, tem ganhado cada vez mais relevância em discussões acerca do bem-estar das mulheres nos últimos anos. Nesse sentido, esse tipo de violência se caracteriza como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais da saúde, as desumanizando na medida em que fere sua autonomia, muitas vezes submetendo-as a procedimentos desnecessários. Nesse sentido, de acordo com Diniz (2009, apud BARRETO; TRAJANO, 2021), há a crença de que o corpo feminino é “essencialmente defeituoso, imprevisível e potencialmente perigoso, portanto necessitando de correção e tutela, expressas nas intervenções.” Dessa forma, a tomada do conhecimento obstétrico pelos médicos gerou a institucionalização do parto e deu destaque para o fenômeno denominado “pessimismo fisiológico”, noção que possibilita que a mulher seja subjugada ao homem, sendo limitada ao papel social de reprodução. Nessa visão, para além da violência física, também são observados abusos psicológicos, como demonstra o gráfico abaixo.

 

Gráfico 3 – Violências praticadas no momento do parto

Fonte: Nascer no Brasil

 

Ainda, de acordo com um estudo exploratório de abordagem qualitativa realizado por Trajano e Barreto (2021), um profissional da área de ginecologia obstetra traz o seguinte relato:

[…] mas culpa da mãe, do parto não tá saindo daquele jeito que tem que sair, você não tá fazendo força, você tá deixando seu bebê aí, entendeu, e muitas vezes não é, é exaustão, é realmente não compreender como tem que fazer a força, ou seja, aí tu joga pra mãe a culpa de um trabalho de parto que muitas vezes tá até distociado, ou até uma desproporção, entendeu, então isso a gente ainda presencia sim.         

Percebe-se que a discriminação de gênero no cuidado médico permeia diversas esferas da vida das mulheres, fato esse que evidencia a importância do endossamento de políticas públicas voltadas para o bem-estar feminino. Nesse sentido, o Observatório das Desigualdades busca dar foco para essa questão, incitando o debate e os consequentes progressos em prol da melhoria desse cenário. Assim, o dia 8 de março pede muito mais do que promessas vazias de um futuro melhor, mas, sim, carece de avanços em direção à igualdade e à dignidade.  

 

Referências

ELDEBRANDO, R; PINTO, E. Direito à saúde da mulher: como o gaslighting contra o gênero feminino pode se manifestar em consultas médicas? Anais da XVI Mostra Científica do CESUCA, nov. 2022. Disponível em: <https://ojs.cesuca.edu.br/index.php/mostrac/article/view/2280>.

BARRETO, E; TRAJANO, A. Violência obstétrica na visão de profissionais de saúde: a questão de gênero como definidora da assistência ao parto, 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/icse/a/PDnDR5XtNdJy47fkKRW6qcw/?lang=pt&format=html>.

Instituto de Pesquisa DataSenado. Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher, 2023. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/pdfs/destaques_pes_nacional_violencia_contra_mulher_digital.pdf/view>.

HALE, S. Medical Gaslighting: Study Reveals 72% of Millennial Females Feel Dismissed by Doctors, 2023. Disponível em: <https://www.miracare.com/blog/medical-gaslighting/>.

LAZZERI, T. Vítimas da violência obstétrica: o lado invisível do parto, 2015. Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html>.

ALECRIM, J et al. Atuação do enfermeiro no atendimento às crianças e aos adolescentes vítimas de violência doméstica: na Unidade Básica de Saúde, 2021. Disponível em: <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/vitimas-de-violencia>.

 

Autora: Beatriz Acácio, sob orientação do professor Bruno Lazzarotti

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG

 

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