A história do Brasil carrega consigo a trajetória de luta e resistência da população negra, que é protagonista de todos os avanços vivenciados e que trataremos de forma breve neste texto. Cabe destacar que o modelo de escravização adotado no país não só estabeleceu uma exploração física, mas também mental e social na medida em que a cor da pele se tornou um fator preponderante para a definição das estruturas sociais até os dias atuais, com a conformação de diferentes estratégias que marcam a estruturação do racismo no Brasil. Conforme Lilia Schwarcz (2015):

De todo modo, a escravidão se enraizou de tal forma no Brasil, que costumes e palavras ficaram por ela marcados. Se a casa grande delimitava a fronteira entre a área social e a de serviços, a mesma arquitetura simbólica permaneceria presente nas casas e edifícios, onde, até os dias que correm, elevador de serviço não é só para carga, mas também e, sobretudo, para os empregados que guardam a marca do passado africano na cor (p.131)

Com isso, ao longo dos mais de 300 anos de escravidão e mesmo após a abolição, o percurso da população negra é marcado pelo racismo estrutural que se institucionalizou nas relações econômicas, sociais e culturais a exploração facitível e também simbólica de indivíduos identificados como descendentes dos antigos escravizados (ALMEIDA apud MULLER, 2022). 

Para além das características fenotípicas, as manifestações culturais e religiosas foram criminalizadas e marginalizadas ao longo da história. No entanto, ainda que desassociada e, por vezes, camuflada nos padrões católicos europeus, a construção da fé, para além do quesito religioso, se deu como uma forma de resistência e integração da população escravizada. Conforme Lilia Schwarcz (2015), o surgimento do Candomblé se mostrou como uma combinação de heranças culturais/religiosas africanas com a vida e a luta dos negros no contexto de opressão escravista. Fora do contexto religioso, nascido entre a população negra e escravizada no Brasil, o surgimento do samba enfrentou o mesmo racismo direcionado aos seus criadores. Desse modo, assim como o Candomblé, mais que um reflexo da história social do país, esse ritmo musical representa uma ruptura com as repressões culturais impostas pela sociedade estruturada nos vieses eurocêntricos (GINO; SANTOS, 2020).

Apesar da permanente luta e das várias formas de resistência da população negra, mesmo ainda no período da escravidão, que pode ser observado, por exemplo, pela constituição dos quilômetros, as consequências desse racismo institucionalizado ainda persistem, contribuindo para a manutenção da segregação e a violentação desse grupo na contemporaneidade. Segundo Cerqueira e Bueno (2024), em 2022 76,5% das vítimas de homicídios no Brasil eram pessoas negras, incluindo pretos e pardos, somando 35.531 mortes, o que representa uma taxa de 29,7 homicídios por 100 mil habitantes desse grupo. Em comparação, as pessoas não negras — brancas, indígenas e amarelas — tiveram uma taxa de homicídio de 10,8, com 10.209 vítimas no total. Isso significa que, proporcionalmente, para cada pessoa não negra assassinada no país, 2,8 pessoas negras são mortas. Essa diferença significativa no perfil racial das vítimas de violência não é nova e continua a ser uma realidade preocupante no Brasil. O infográfico abaixo permite a visualização dos dados.

 

Infográfico 1: Dados sobre a violência contra pessoas negras em 2022

Fonte: Atlas da Violência 2024

 

Fazendo um recorte de gênero, em 2022 as mulheres negras representaram 66,4% do total de homicídios femininos registrados pelo sistema de saúde. Em termos absolutos, 2.526 mulheres negras foram assassinadas. Nesse ano, a taxa de homicídios de mulheres negras foi de 4,2 por 100 mil habitantes, enquanto a taxa para mulheres não negras foi de 2,5. Isso indica que mulheres negras tiveram 1,7 vezes mais probabilidade de serem vítimas de homicídios em relação às mulheres não negras.

Ainda, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), em 2023 observou-se uma mudança no registro de crimes de injúria racial e, principalmente, de racismo. O número de casos de racismo aumentou significativamente, passando de 5.100 em 2022 para 11.610 em 2023, o que representa um crescimento de 77,9% nas ocorrências. Esse aumento reflete, em parte, não apenas a persistência dessas práticas, mas também a maior conscientização da população e a não aceitação dessas atitudes pela sociedade, fruto de uma longa e árdua luta do movimento negro, que tem impulsionado debates, promovido avanços legais e encorajado a denúncia como forma de combater o racismo estrutural. 

Quando analisamos os dados regionais, a taxa nacional de casos de racismo por 100 mil habitantes foi de 5,7. Sete estados superaram essa média, com destaque para o Rio Grande do Sul (26,3) e o Paraná (14,0), ambos na Região Sul. Em seguida, aparecem Sergipe (13,5), Goiás (8,1), Mato Grosso do Sul (7,5) e Acre (5,9). Nenhum estado da Região Sudeste figura entre os que registram taxas mais elevadas.

 

Gráfico 1: Taxa de registros de racismo por Unidade da Federação (2022-2023)

Fonte: Atlas da Violência 2024

 

Embora o aumento seja alarmante, os números não refletem todo o impacto do racismo estrutural e institucional, que opera de forma sistêmica e difícil de medir. Isso inclui desigualdades na educação, em que escolas em áreas negras recebem menos recursos; no trabalho, com discriminação em contratações; e na justiça, com a maior presença de negros nas prisões. Esses exemplos mostram como o racismo vai além das denúncias registradas, permeando estruturas sociais, políticas e econômicas que sustentam desigualdades históricas e dificultam a superação do preconceito e da exclusão.

O racismo institucional se refere às práticas discriminatórias de organizações, como empresas, associações e instituições públicas, que dificultam e atrasam serviços para certas pessoas com base na cor, raça ou etnia. Isso se manifesta em normas, políticas e comportamentos prejudiciais, muitas vezes reforçados por expressões pejorativas e ofensivas (PANIAGUA et al., 2022). Um exemplo disso foi investigado por Bujato e Souza (2020 apud PANIAGUA et al., 2022), que revelaram racismo institucional em uma universidade, evidenciado pela baixa representatividade de alunos e professores negros, principalmente em cursos de saúde como medicina e odontologia.

O racismo estrutural, por sua vez, refere-se à forma como as sociedades foram organizadas para garantir privilégios à raça branca em detrimento de outras, a fim de manter o poder sobre grupos marginalizados. No Brasil, isso é evidente em diversos aspectos, como na predominância de pessoas brancas no Executivo, Legislativo e Judiciário, em todos os níveis de governo.

Um marco recente foi a criação, em 2023, do Ministério da Igualdade Racial (MIR), vinte anos após o estabelecimento da primeira Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Essa iniciativa ocorreu após o governo Bolsonaro (2019-2022), que enfraqueceu as políticas de direitos humanos, incluindo as voltadas para a igualdade racial. O MIR agora busca colocar a luta antirracista no centro do debate público.

Além disso, houve avanços legais na luta contra o racismo. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a injúria racial deveria ser tratada com a mesma gravidade que o crime de racismo. Enquanto a injúria racial é uma ofensa direcionada a um indivíduo com o objetivo de humilhá-lo por sua cor ou etnia, o racismo é uma prática mais ampla que exclui e discrimina grupos inteiros. Em 2023, essa decisão foi formalizada com a Lei 14.532, que transferiu a injúria racial do Código Penal para a legislação de racismo, aumentando a pena para dois a cinco anos e tornando o crime inafiançável e imprescritível.

Apesar dessas mudanças legais, ainda não é possível afirmar que o combate ao racismo avançou ou que o sistema de justiça penal se tornou mais eficiente. Seria necessário verificar se o aumento de registros de racismo resultou em mais condenações. Além disso, o impacto dessas leis no racismo estrutural e institucional ainda é incerto, embora haja alguns indícios de progresso.

Conclusão

Precisamos dar mais espaço, nas discussões públicas, para políticas antidiscriminatórias que promovam inclusão e igualdade. Apostar quase totalmente no modelo punitivista – criticado por ser focado na repressão, sem considerar a reabilitação ou reintegração do infrator à sociedade – tem se mostrado uma estratégia limitada. A punição resolve apenas casos pontuais, quando a violação já ocorreu. É fundamental ampliar a abordagem, buscando soluções que não só corrijam, mas também previnam problemas de maneira mais eficaz e duradoura. 

Também é importante não cair na armadilha de comparar ou hierarquizar diferentes formas de opressão. A escritora Audrey Lorde (2023 apud CERQUEIRA; BUENO, 2024) afirmou que enfrentar a desigualdade é um processo complexo, que envolve não apenas combater forças externas que desumanizam pessoas negras, mas também lidar com valores negativos que essas pessoas podem ter sido forçadas a adotar. Para Lorde (2023), não existe uma resposta única para problemas como o racismo. Em vez disso, ela acreditava em uma luta diária e constante contra as opressões.

Lorde (2023) também alertou para o risco de conflitos internos que surgem quando há intolerância às diferenças dentro da própria comunidade. Sua reflexão sugere que a mudança não deve acontecer apenas em certos momentos ou somente ao nosso redor, mas também dentro de nós mesmos. A prática do antirracismo exige que cada pessoa atue de forma ativa para promover essa transformação (CERQUEIRA; BUENO, 2024).

 

 

Autoras: Beatriz Acácio e Mariana Avelar, sob orientação do professor Bruno Lazzarotti e do professor Matheus Arcelo.

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro.

 

 

Referências:

ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. ISSN 1983-7364.

PANIAGUA, Cleiseano Emanuel da Silva et al. Proposta de uma intervenção pedagógica para promover uma educação antirracista: da escravidão ao racismo institucional e estrutural no Brasil do século XXI. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. 1, p. 5511-5530, 2022.

CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira (coord.). Atlas da violência 2024. Brasília: Ipea; FBSP,

  1. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/14031

SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MULLER, D. Apontamentos sobre escravidão e racismo no Brasil. Laborare, São Paulo, Brasil, v. 5, n. 9, p. 151–169, 2022. DOI: 10.33637/2595-847x.2022-141. Disponível em: https://revistalaborare.org/index.php/laborare/article/view/141. Acesso em: 19 nov. 2024.

Vista do Samba: resistência da cultura negra popular brasileira. Disponível em: <https://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1528/1442>.Acesso em 17 nov. de 2024.

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