Triste louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal

A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

 

(Triste, louca ou má – Francisco, El Hombre)

Há muitas formas de contar uma história. Escrever um roteiro envolve, a partir de uma ideia, construir personagens, e definir quem são seus protagonistas. Também é fundamental montar as cenas, a partir das ações e interações entre esses personagens, o que geralmente envolve um conflito. Essas cenas se constroem por imagens, sons e movimentos. Mas também pela definição de focos, em um jogo de luz e sombras. Há, ainda, o tom, que é como se enlaça quem narra uma história e quem lê ela (ou ouve ou vê). O fio condutor de uma história é seu argumento, cuja definição é também uma forma de se posicionar no mundo.

O que apresentamos nas próximas páginas para você, leitora, é uma breve história sobre as desigualdades de gênero no mundo do trabalho no Brasil. Cabe uma pausa aqui para explicar que vamos usar o feminino, mas convido es/os leitores a se sentirem incluído nele. Também vamos usar este tom um pouco mais informal, porque achamos que o que tem faltado nesse momento que vivemos é diálogo e conversa franca, sem perdermos tempo com data venia. Para aumentarmos a fluidez de nosso diálogo, vamos deixar as referências para você nos links (é só clicar no texto que estiver assim: link). Neles, você encontra referências para aprofundar a sua interação com essa e outras histórias.

Voltando ao nosso ponto: ao contarmos essa história, não nos colocamos como narradoras neutras, mas como alguém que vê o mundo de um lugar bastante específico, o de feminista. Ser feminista é assumir um compromisso ético e político com a transformação radical do mundo em que vivemos, orientando-se, para isso, pela igualdade e justiça. Como é possível ser feminista de muitas formas, aqui já conto logo para você que nós entendemos que a igualdade de gênero tem que ser construída bem articulada com a igualdade de raça, etnia, classe, dentre outras formas de inclusão que desejamos que se tornem realidade (sociais e territoriais). Você já deve estar imaginando, neste momento, quem nós convidamos para protagonizar esta história. E, sim, você está coberta de razão. São os feminismos. Para construir nosso argumento vamos buscar nas teorias e práticas feministas nossas ferramentas.

Para dar imagem, sons e movimentos para a ação, vamos trazer alguns dados. É importante que usemos o conhecimento como aliado em nossa narrativa. Para isso, fazemos aqui uma breve pausa para convidar você a conhecer dois Observatórios das Desigualdades, o da UFRN e o da Fundação João Pinheiro.  Eles serão fontes importantes para a nossa narrativa. Por fim, na nossa cena final, vamos fazer algo diferente. Não vamos nos limitar a contar o que aconteceu e o que acontece, mas também vamos propor alguns caminhos para podermos construir uma narrativa de futuro que seja diferente. E aí vamos convidar você a se engajar para que essa visão de futuro possa, de fato, virar conversa cotidiana.

Começamos?

Vamos começar pelo 8 de março. Exatamente aquele dia em que muitas pessoas acham que é o dia de dar flores e bombons para mulheres e algumas organizações disponibilizam serviços de manicure e cabeleireiros para deixar a mulherada top. Nós queríamos te convidar a entender o 8 de março de forma diferente, como o Dia internacional de Luta das Mulheres. Nessa proposta, a gente pode substituir as flores por direitos e os bombons por efetivar igualdade e justiça (e nada contra as flores e os bombons, que podem fazer parte da nossa grande festa da justiça social, quando ela acontecer). E entender esse dia como um marco que nos convoca a pensar (e agir) sobre um problema que deve ser encarado em todos os outros dias do ano: as desigualdades de gênero.

Em 2021, será a primeira vez que vamos vivemos este momento durante a pandemia de covid-19, um dos episódios mais tristes de nossa história. Em pouco mais de um ano, já foram registradas mais de 250 mil vidas perdidas no Brasil mais de duas milhões no mundo. Mas, não pense nesse número de forma abstrata. Lembre-se que por detrás de cada um deles há sonhos, amores (e dores) e, pelo menos, uma música preferida. E há você, que ficou, mas perdeu uma pessoa querida. E para lembrar dela é que você vai querer construir um mundo melhor, correto? Então, siga comigo.

A pandemia e a realidade de desigualdades…

Eu parei neste episódio da pandemia porque eu queria te contar que, durante ela, as desigualdades de gênero se intensificaram, assim como as desigualdades de raça e classe (lembrem-se que elas caminham juntas, ou melhor, uma forma os passos das outras).

O recolhimento em casa, necessário para conter a circulação do vírus, cria um ambiente propício para o aumento de casos de violência contra mulheres e crianças. Como o Fórum de Segurança Pública aponta, ainda que tenha diminuído o registro de violências domésticas (o que pode indicar dificuldade das vítimas para acessar o serviço), houve aumento de feminicídios (que quer dizer homicídio de mulheres por serem mulheres). Nesse contexto, o gráfico 1 retrata o número de feminicídios, respectivamente, para o 1° trimestre de 2019 e de 2020, para alguns estados selecionados.

Gráfico 1: Feminicídio para os estados selecionados, 1º trimestre de 2019 – 1º trimestre de 2020

Fonte: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf . Elaboração própria

No Pará, os homicídios de mulheres cresceram 11,8% e os de feminicídios 187,5%. Já no Rio Grande do Sul, observa-se um crescimento de 73% nos casos de feminicídios quando comparados com o 1° trimestre de 2020. Em São Paulo essa tendência continua, ou seja, houve um aumento de 25% de casos de feminicídios, saltando de 36 vítimas, no 1° trimestre de 2019, para 49 vítimas no mesmo período em 2020. Além disso, uma pesquisa do coletivo #VoteLGBT, da UFMG e da Unicamp, indica a percepção da comunidade LBGTQI+ de um aumento de vulnerabilidade durante o período, envolvendo violência, saúde e acesso ao emprego.

O fechamento das escolas, especialmente da educação infantil, aumentou os trabalhos domésticos e de cuidado, desproporcionalmente assumido pelas mulheres. Segundo estudo da SempreViva Organização Feminista (SOF) e Gênero e Número, 50% das mulheres entrevistadas afirmaram ter passado a cuidar de alguém, resultado que varia entre mulheres negras, brancas, indígenas ou amarelas. O fechamento dos já insuficientes serviços de cuidado se somam a pouca participação dos homens nas responsabilidades domésticas (gráfico 2), e o resultado é dramático sobre a vida das mulheres e das pessoas negras (gráfico 3), (ligando os pontos, isso quer dizer piora especialmente para as mulheres negras).

Gráfico 2: Média de horas semanais dedicadas a cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos por pessoa de 14 anos ou mais, segundo sexo e por região geográfica – Brasil (2019)

Fonte: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf. Elaboração própria

Gráfico 3: Média de horas semanais de trabalho doméstico e de cuidado não remunerado, segundo sexo e cor ou raça– Brasil (2019)

Fonte: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf. Elaboração própria

Isso se refletia nos dados da PNAD contínua do IBGE do final de 2020, retratados nesta matéria da Folha de São Paulo. Se comparamos a taxa de ocupação (emprego) do final de 2019 com o final de 2020, percebemos que enquanto os resultados para os homens diminuiu de 64% para 58%, para as mulheres a piora foi de 46% para 40%. E, como apontam os boletins do Observatório das Desigualdades da FJP, são as mulheres negras e empobrecidas que dão a cara do que é a ocupação informal e desprotegida no Brasil. Quer um dado? O Observatório destaca que “se olharmos para aquelas que são chefes de família sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos, 63% estão abaixo da linha da pobreza”. O que já estava ruim, ficou pior.

Nenhuma categoria profissional é tão ilustrativa dos dados que mostramos pra você como a das trabalhadoras domésticas. Usamos o feminino porque elas são majoritariamente mulheres (95%), mais precisamente: mulheres negras (65%), conforme ilustra o gráfico 4. A profissão significa 15% das trabalhadoras empregadas (10% das mulheres brancas e 18,6% das negras). E empobrecidas. Em 2019, a remuneração média no setor era de R$916,00, abaixo do salário-mínimo, e em 2020, apenas 28% delas tinha carteira assinada. Convidamos vocês para ver esse retrato das desigualdades no gráfico a seguir.

Gráfico 4: Trabalhadores(as) domésticos(as) de 18 anos ou mais de idade, segundo a posse de carteira de trabalho, por sexo e raça/cor – Brasil (2018)

Fonte: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10077/1/NT_75_Disoc_Vulnerabilidades%20das%20Trabalhadoras%20Domesticas.pdf . Elaboração Própria

Além disso, no último ano, o trabalho doméstico se fez bastante presente na coleção de histórias macabras que só um país tão desigual e enraizado na escravidão  como o Brasil pode oferecer. Em Pernambuco, o menino Miguel encontrou a morte enquanto sua mãe, Mirtes Souza, trabalhadora doméstica, passeava com os cachorros e sua patroa, Sarí Corte Real, despachava-o pelo elevador rumo a seu destino trágico. Em Minas Gerais, Madalena Gordiano, foi resgatada após ter sido submetida por quase toda sua vida ao trabalho doméstico em condições análogas à escravidão.

Antes de prosseguirmos, é importante lembrar você, leitora, que a crise econômica causada pela pandemia foi piorada, no Brasil, pelo fato do Governo Federal ter adotado uma estratégia de atrapalhar deliberadamente o combate à pandemia. O que significa que o Governo Federal tem responsabilidade na piora das desigualdades econômicas, que corroem as condições de vida das brasileiras e dos brasileiros, especialmente daquelas e daqueles que já estavam em maior situação de vulnerabilidade, a exemplo das mulheres negras e empobrecidas, especialmente do Norte e Nordeste do país.

 

Mundo do trabalho: desigualdades de gênero interseccionadas com raça, etnia e classe

Como você pode perceber, a realidade das desigualdades de gênero/sexualidade interseccionada com raça e classe é injusta, e piorou do 8 de março de 2020 para 2021. Para entendermos um pouco melhor esses fatos, vamos rapidamente abrir uma caixa de ferramentas conceituais.

Um conceito fundamental para entendermos as desigualdades de gênero é o de divisão sexual do trabalho, que, como discutem as feministas, separa e hierarquiza formas de trabalho, em relação ao gênero. Os trabalhos reprodutivos (que inclui os cuidados e os trabalhos domésticos remunerados e não remunerados) são associados às mulheres e a sociedade atribui a eles menor valor. Suas formas não remuneradas nem mesmo são reconhecidas como trabalho! Ou você já parou pra pensar na quantidade de trabalho que sua mãe, avó ou tia tiveram que realizar pra garantir que você estivesse aqui lendo este texto?

O trabalho de cuidado é o maior exemplo do paradoxo que é a organização social de nossas vidas. Ainda que ele seja fundamental para a sustentabilidade da vida humana, a forma que nós organizamos nosso tempo e nossas vidas não se faz em torno dele. Ao contrário, o trabalho de cuidado é realizado “nas brechas” dos tempos disponíveis, ou por meio do “se virar” das mulheres. No Brasil, as famílias que podem pagar contratam trabalhadoras domésticas para fazê-lo. Mas quem cuida das trabalhadoras domésticas? Esta é uma pergunta que continua sem resposta, já que as aflições cotidianas das mulheres negras não se veem refletidas no espelho da branquitude, que define as fronteiras do que importa em uma sociedade desigual como o Brasil.

Para entendermos as desigualdades estruturantes do mundo do trabalho, gênero e divisão sexual do trabalho são ferramentas fundamentais, mas não suficientes. É necessário termos em vista a intersecção com outras relações que produzem desigualdades, como classe, etnia e raça. Isso significa entender que essas relações formam um nó que não dá pra desatar. E é desse fio que puxamos toda a história que contamos até agora.

Este ferramental teórico, tirado da caixinha de ferramentas feministas, é muito útil para entendermos o mundo em que vivemos. Mas não apenas. Ele também serve para agirmos nele e, assim, mudarmos seus rumos. É aqui que nos encaminhamos para o fim de nossa história.

Mundo do trabalho com igualdade e justiça: um final feliz

A partir daqui, apresentamos algumas propostas para mudarmos o desfecho da história que apresentamos para você, para podermos acreditar em um final feliz. Nosso foco é a garantia de direitos humanos e a efetivação de políticas públicas. Mas queremos alertar que os horizontes feministas vão muito além desses limites, e projetam uma nova sociedade.

A base para as nossas propostas foram os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (2004; 2008; 2013) que sistematizaram em propostas de políticas públicas as reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres de todo o Brasil. E, ainda, o “Relatório Final do Grupo de Trabalho para Fortalecimento das Ações de Enfrentamento ao Racismo, Sexismo e Lesbofobia no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, que apontou caminhos para interseccionar gênero/sexualidade, raça e classe, fruto da atuação dos movimentos de mulheres negras, lésbicas e bissexuais.

Começamos pela promoção de inciativas que ampliem o acesso de todas as mulheres a empregos de qualidade, e que contem com garantias trabalhistas e previdenciárias, com especial atenção às mulheres negras. E, ainda, ações que garantam condições adequadas para geração de renda, especialmente das mulheres rurais (crédito, assistência técnica, acesso ao mercado consumidor, apoio ao associativismo, cooperativismo e economia solidária). Essas iniciativas precisam envolvem a intersetorialidade das políticas de trabalho e de educação, proporcionando a oferta educativa não sexista, não racista e não homo-bi-lesbotransfóbica. Essas medidas são importantes para “quebrar” as “paredes” e “tetos” de vidro que separam “trabalhos femininos” de “trabalho masculinos”, e que contribuem para o desvalor dos primeiros e para limitar a ascensão feminina em postos de liderança.

Promover a permanência em posições e ocupações que gerem renda é também fundamental. Nesse sentido, é necessário envolver o Estado como um todo e, também, o setor empresarial na adoção/ampliação/manutenção de medidas não discriminatórias e de ações afirmativas que permitam o acesso a postos de trabalho de qualidade e, também, às universidades.

Além disso, igualmente importante é a garantia de acesso a benefícios sociais não contributivos (ex. renda básica da cidadania) para reduzir a pobreza, especialmente se considerarmos pessoas que, ao longo de sua trajetória laboral, não tiveram acesso ao mercado formal de trabalho (que envolve especialmente mulheres e pessoas negras, mas também outros grupos, como mulheres e homens trans). Direitos como os de licenças remuneradas por nascimento de filhas e filhos, especialmente paternidade, ainda estão vinculados à lógica de contribuição, e não de valorização do cuidado e de quem cuida.

A questão das licenças nos remete à importância de estruturação de um sistema nacional integral de cuidados, que articule políticas e direitos para quem precisa de cuidados (crianças e pessoas idosas e deficientes em situação de dependência), quem cuida, de forma remunerada e não remunerada (especialmente mulheres, e, dentre elas, mulheres negras) e, ainda, para quem deveria cuidar.

A valorização de quem cuida profissionalmente e não profissionalmente implica garantia/ampliação/efetivação de direitos. A categoria das trabalhadoras domésticas deve ser prioritária, assim como a estruturação de carreiras e pisos salariais para outras profissões que se relacionam ao cuidado, a exemplo da enfermagem (incluindo técnicas) e parteiras.

Políticas e direitos podem ser utilizados para fomentar a maior responsabilidade de quem deveria cuidar, mas não o faz. Nesse sentido, a criação de licença parental para o primeiro ano das crianças (incluindo adoção) seria fundamental, pois permitiria o exercício por mães e pais. Além disso, ao se desvincular da ideia de maternidade/paternidade, a medida oferece uma resposta mais adequada para outros arranjos familiares, incluindo as famílias LGBTQI+.

A peça fundamental de um sistema nacional integral de cuidados é, contudo, a estruturação de serviços públicos e de qualidade para o cuidado de crianças e pessoas idosas e deficientes. No caso das crianças, necessário priorizar a educação infantil, por meio de creches e pré-escolas integrais, e que elas sejam articuladas a outras iniciativas de cuidado que permitam atender, de forma flexível, as necessidades de quem cuida, considerando quem trabalha à noite, de final de semana e durante as férias escolares.

Finalmente, é necessário recordar que se a intersecção entre gênero, raça, etnia e classe estruturam as desigualdades sociais e territoriais no mundo do trabalho, um projeto de ações públicas produtor de igualdades deve ser orientado para responder a esses problemas públicos. E isso inclui as ditas “grandes questões” políticas e econômicas. Reformas trabalhistas, previdenciárias e tributárias, por exemplo, devem ser pensadas em termos interseccionais. Assim como os efeitos (nefastos) das reformas recentes e de medidas como o teto de gastos.

Esperamos, por meio desta reflexão, contribuir com teorias e práticas para enfrentar as desigualdades. E, no subir dos créditos, agradecemos especialmente aos feminismos, por protagonizarem uma história de luta que traz a crítica para a análise, mas pratica o otimismo na construção do devir.

 

Autoras:

Mariana Mazzini Marcondes é feminista e doutora em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Professora de Administração Pública e Gestão Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e docente do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública (PPGP/UFRN), é também Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Ministério da Economia (em vacância). Coordena o Observatório das Desigualdades da UFRN. Pesquisa: gênero e políticas públicas; desigualdades e política social; cuidado, trabalho e gênero; e participação social.

Marina Silva é graduanda em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro e coordenadora discente do Observatório das Desigualdades, um projeto de extensão da FJP em parceria com o CORECON/MG.

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