Em 15 de outubro, mais uma vez se comemorou o dia das professoras e professores no Brasil. É sempre comovente observar a gratidão e o reconhecimento das pessoas a estas e estes profissionais, que enfrentam, cotidianamente, a honrosa e dura luta pela construção do destino de milhões de nossas crianças e adolescentes e, em boa medida, também do nosso próprio destino compartilhado. A história da data comemorativa no Brasil é, em si mesma, uma bela homenagem à profissão. O dia dos professores resultou da liderança de Antonieta de Barros, que foi a primeira deputada negra e figurou entre as três primeiras mulheres eleitas do Brasil. Filha de escrava liberta e tardiamente alfabetizada, Antonieta tornou-se professora de prestígio e grande defensora, até o final de sua vida, da superação do analfabetismo e do direito universal à educação no país.
Para além das homenagens: a desvalorização dos docentes no Brasil comparada ao cenário internacional
A homenagem é bonita e merecida; o problema é quando este reconhecimento não tem consequências sobre o real prestígio e valorização da profissão, o que é o caso no Brasil. Segundo dados do TALIS (estudo comparativo sobre professores de educação básica de vários países), o Brasil figura entre os países cujos professores menos se sentem valorizados, como mostra o gráfico 1.
Gráfico 1 – Percentual de professores que concordam ou concordam totalmente com a afirmação de que a profissão docente é valorizada na sociedade (2018)
Fonte: OCDE (2020)
Esta percepção (apenas cerca de 10% professores sentem que a sociedade valoriza seu trabalho) parece bastante realista, quando consideramos os rendimentos dos docentes brasileiros com os de outros países. O gráfico 2 mostra a relação entre o salário inicial dos professores de diferentes países e o nível de satisfação deles com o salário recebido. A observação do gráfico deixa bem claros dois pontos. Primeiro que, de forma geral, os professores sabem avaliar o quão bem ou mal remunerados eles são e isto afeta sua satisfação com as condições de trabalho, já que há uma grande consistência entre o salário efetivamente recebido e a satisfação dos docentes em relação a ele. Em segundo lugar, fica também evidente o quanto a insatisfação dos professores brasileiros expressa, de fato, a lamentável realidade salarial que experimentam, já que o Brasil se encontra entre as piores situações quanto às duas variáveis analisadas. E a situação desvantajosa dos professores brasileiros se mantém não apenas em comparação com os países da OCDE ou com outros países mais ricos do que o Brasil; os salários iniciais do magistério no Brasil é bastante inferior ao de países como México, Chile, Colômbia ou Turquia.
Gráfico 2 – Salários iniciais previstos para professores e satisfação com o salário (2018)
Fonte: OCDE (2020)
Por dentro da realidade brasileira: uma categoria desvalorizada
Mas e se, em vez de nos compararmos com outros países, avaliarmos a remuneração do magistério em comparação com outras profissões no próprio Brasil? Será que a situação da carreira docente seria mesmo tão ruim? A resposta parece ser um sonoro “sim” e as evidências para isto são variadas. Por exemplo, estudo elaborado por Janaína Feijó, da Fundação Getúlio Vargas, analisou as informações de pessoas que trabalham em empresas privadas, em ocupações que exigem ensino superior. A partir disso, listou as profissões citadas com maiores e menores salários no país. Dentre as 11 profissões com pior remuneração encontradas, seis delas estão diretamente relacionadas à educação básica. Uma nota positiva é que, entre 2012 e 2022, várias destas ocupações experimentaram alguma melhoria em sua remuneração, o que, porém, não foi suficiente para deixarem a condição de mais mal remuneradas do país.
Gráfico 3 – Ocupações com menores rendimentos no Brasil no 2º trimestre de 2023
Fonte: Nunes (2023)
O estudo, apesar de bastante eloquente, apresenta a limitação de cobrir apenas as empresas privadas. O INEP, órgão do Ministério da Educação, acompanha a evolução dos rendimentos médios dos profissionais da educação básica em comparação aos demais trabalhadores com curso superior. Os gráficos 4 e 5 mostram esta trajetória. Caso se observe o Gráfico 4 isoladamente, a impressão inicial seria predominantemente positiva: a diferença entre o rendimento dos profissionais do magistério das redes públicas de educação básica e o rendimento dos demais profissionais com ensino superior completo reduziu-se até o ano de 2021, quando estagnou. Entretanto, quando se analisa mais atentamente o motivo deste declínio, os resultados são bem menos animadores: o rendimento dos profissionais do magistério oscila ao longo dos anos em torno de valores semelhantes ao longo dos anos, reduzindo-se significativamente em 2021 e 2022, ano em que registra o menor valor real da década. A convergência identificada no primeiro gráfico não se explica por uma valorização do trabalho docente, mas pela deterioração dos rendimentos dos demais profissionais com ensino superior.
Gráfico 4 – Relação percentual entre o rendimento bruto médio mensal dos profissionais do magistério das redes públicas da educação básica e dos demais profissionais assalariados, com nível superior completo (Brasil, 2013-2022)
Fonte: Dired/Inep
Gráfico 5 – Rendimento bruto médio mensal dos profissionais do magistério das redes públicas de educação básica e dos demais profissionais com nível superior completo (Brasil, 2013-2022)
Fonte: Dired/Inep
Ou seja, de maneira geral, o que parece ter ocorrido é que os mecanismos vigentes de valorização docente – piso salarial nacional, exigência de planos de carreira, vinculação de parte dos recursos do FUNDEB para remuneração dos profissionais da educação – foram importantes para proteger os salários dos professores de uma deterioração maior, como a ocorrida em outras ocupações, mas não de promover a valorização da remuneração dos professores. Além disto, em nenhum momento, no Brasil, esta remuneração alcançou a média de outras ocupações de nível superior.
Barreiras à formação de profissionais qualificados
O pouco prestígio sócio-ocupacional e salarial da carreira docente é péssimo para os professores, mas não apenas para eles. A baixa atratividade da carreira docente prejudica enormemente a qualidade da oferta educacional e compromete o direito à educação, especialmente dos públicos mais vulneráveis. Como se verá adiante, as consequências são várias. Primeiro, uma parcela pequena de crianças e adolescentes no Brasil projeta a vocação docente como um desejo profissional e aqueles que o fazem não são os que apresentam o melhor desempenho acadêmico.
Gráfico 6 – Alunos de de 15 anos que querem ser professores ou engenheiros
Fonte: BID (2018)
Como se vê pelo Gráfico 6, menos de 10% dos estudantes de 15 anos no Brasil aspiram à carreira docente, muito abaixo dos que desejam ser engenheiros, o que coloca o Brasil entre os países da amostra que menos despertam a vocação docente entre seus estudantes secundaristas. Além disto, como se pode observar no Gráfico Y, no Brasil, como ocorre também em alguns outros países, os estudantes que se interessam ainda no ensino médio pela carreira docente têm desempenho acadêmico (conforme medido pelo PISA) inferior à média de seus colegas. Ou seja, o Brasil – como outros países da América Latina e ao contrário dos países com melhor desempenho no PISA – sinaliza problemas de recrutamento daqueles que serão os docentes das próximas gerações: desperta poucas vocações (o que significa que parte importante dos que serão professores não o serão como resultado de suas aspirações prioritárias) e os que pretendem se dedicar a esta profissão não estão entre aqueles com melhor desempenho acadêmico. É preciso ter claro que nem uma coisa nem outra são condenações: muitos professores descobriram ou construíram sua vocação docente durante ou após sua formação para o magistério e muitas pessoas que tiveram limitações em sua trajetória escolar recuperam, pela dedicação e pelas oportunidades que encontram, sua qualificação ao longo de sua trajetória. No entanto, a estruturação de carreiras tão importantes não pode se sustentar nestas suposições heróicas sobre seus trabalhadores, mas tratá-los com o mesmo respeito profissional e expectativas direcionados a outras carreiras.
Gráfico 7 – Diferença na pontuação da avaliação do PISA entre jovens interessados em ser professores e outros estudantes (2015)
Fonte: BID (2018)
Estas tendências, de fato, se traduzem na procura efetiva pelos cursos vinculados ao magistério, conforme demonstram os dados do Censo do Ensino Superior do MEC, divulgados em 2023. De forma geral, apesar da grande oferta de vagas em licenciatura (mais concentrada em Pedagogia do que nas licenciaturas em disciplinas específicas), grande parte delas sequer são preenchidas, como exemplifica, com alguns cursos, o gráfico 8. Já em pedagogia, quase 30% das vagas ofertadas na rede pública e 57% das vagas da rede privada sequer são preenchidas, mas os casos da formação de professores de química e física são ainda mais graves: em torno da metade das vagas ofertadas na rede pública e mais de 95% das vagas na rede privada permanecem sem ocupação.
Gráfico 8 – Taxa de ocupação das vagas ofertadas, segundo cursos específicos (Brasil, 2022)
Fonte: Inep (2023)
Ademais, a expansão descontrolada e pouco criteriosa do Ensino à Distância fez com que esta modalidade de ensino tenha se tornado absolutamente dominante na formação de professores. Segundo o Censo do Ensino Superior, em 2022, nada menos do que 64% dos matriculados e 81% dos ingressantes em cursos de licenciatura o fizeram na modalidade à distância. É possível, sem dúvidas, ter ensino à distância com qualidade, mas ter a grande maioria de nossos professores da educação básica – nível de ensino exigente e altamente dependente do desenvolvimento de habilidades interpessoais e da interação cotidiana – formados em cursos e instituições à distância, cuja proliferação se deu de maneira pouco criteriosa e regulada, traz preocupações evidentes sobre a qualidade e adequação da formação dos novos docentes.
Gráfico 9 – Número de ingressantes e de matrículas em cursos de licenciatura (Brasil, 2012-2022)
Fonte: Inep (2023)
A consequência, em termos do perfil dos futuros docentes, é lamentável, mas previsível. De maneira geral, os cursos de licenciatura estão entre os que recrutam os candidatos com pior desempenho acadêmico, conforme indicado pela nota no ENEM. O gráfico 10 exemplifica estas diferenças, mostrando que, em pedagogia, a distribuição da nota dos ingressantes concentra-se em valores bastante inferiores àquela de outros cursos. Novamente, é importante ressaltar que a) os testes padronizados medem imperfeitamente e uma parte limitada do conjunto dos resultados e dos aprendizados da trajetória escolar dos estudantes, b) o desempenho passado é também um preditor limitado do desempenho futuro dos estudantes, especialmente após ingressarem na vida adulta e em áreas de formação menos generalistas e c) a formação inicial precária pode ser compensada também pela dedicação posterior dos profissionais ou pelas oportunidades de formação continuada que venham a ter. No entanto, ainda assim, em termos agregados, é um indicador útil, ainda que limitado, do perfil acadêmico dos ingressantes em cada curso e área. E o que os dados mostram é que aqueles que vão se dedicar à educação das próximas gerações não são recrutados entre os estudantes com desempenho acadêmico mais destacado.
Gráfico 10 – Desempenho no Enem dos alunos que ingressaram na educação superior de graduação em 2022 por cursos específicos
Fonte: Inep (2023)
O ensino superior apresenta, no Brasil, uma baixa taxa acumulada de conclusão, situada em 41%, em 2022, segundo o Censo do Ensino Superior. Finalmente, dados o perfil, as dificuldades gerais e específicas para a permanência no ensino superior e as baixas e incertas expectativas em relação ao futuro profissional, as taxas de conclusão acumuladas em todas as licenciaturas são, em sua maioria, comparativamente ainda mais baixas, variando de um máximo de 51% em Pedagogia a um mínimo de 24% em Física.
Gráfico 11 – Evolução dos indicadores de trajetória dos estudantes em cursos de licenciatura para a coorte de ingressantes de 2013 (Brasil, 2013-2022)
Fonte: Inep (2023)
Assim, a baixa atratividade da profissão, os problemas de recrutamento e de formação de professores e sua distribuição no território levam a deficiências diretas na adequação e qualidade oferta educacional que os sistemas de ensino têm condições de proporcionar a nossas crianças e adolescentes em todos os níveis da educação básica, mas especialmente nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Conforme mostram os gráficos 12 e 13, em todas as áreas dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio há carência de professores do Grupo 1, que designa os professores que possuem licenciatura (ou bacharelado com complementação pedagógica) na mesma disciplina que leciona, que é o perfil desejável de docentes.
Gráfico 12 – Adequação da formação dos professores dos anos finais do Ensino Fundamental (Brasil, 2022)
Fonte: Inep (2023)
Gráfico 13 – Adequação da formação dos professores do Ensino Médio (Brasil, 2022)
Fonte: Inep (2023)
Conclusão
Mesmo considerando somente a realidade brasileira, o perfil educacional de sua população e as condições específicas de nosso mercado de trabalho, a situação da carreira docente no Brasil expressa sua pouca valorização. Isto responde a um aumento importante do investimento educacional do início do século até 2015 e à criação de instrumentos como o Piso Nacional Docente e o Fundeb. Todavia, após uma valorização real que alcançou 2013, estes instrumentos só foram capazes de evitar perdas maiores para os professores, fazendo com que essa aproximação entre os salários deva-se antes à diminuição dos rendimentos de profissionais de outras áreas e do que a um aumento dos salários dos professores. Por fim, a baixa valorização da profissão de professor diante das demais resulta em diversas consequências, como o desinteresse dos jovens pela carreira docente na Educação Básica, bem como uma baixa qualidade do ensino, visto que os professores não são devidamente reconhecidos pelo seu trabalho. Isto acaba por se refletir na reiterada carência de docentes com a formação sólida e adequada para o exercício do magistério. Assim, a baixa atratividade e prestígio da profissão docente, mais do que a falta de reconhecimento por quem exerce uma tarefa tão importante, compromete toda a qualidade e equidade na educação, ao não ser capaz de garantir aos estudantes a interação com professores vocacionados, motivados, com formação sólida e adequada.
Em vista dos dados acima, o dia dos professores torna-se muito mais do que um dia para parabenizar esses profissionais, que sofrem cotidianamente com a desigualdade salarial, o desamparo e a falta de reconhecimento, mas também é um dia para promover o debate sobre as causas dessas disparidades e formas de solucionar e de mudar a realidade da educação pública no Brasil.
Autor: Bruno Lazzarotti
*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG
REFERÊNCIAS
Censo da Educação Superior 2022: Divulgação dos resultados. Inep, Brasília, 2023. Disponível em: <https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2022/apresentacao_censo_da_educacao_superior_2022.pdf>. Acesso em: 26 out. 2023.
Dired/Inep. Painel de Indicadores do Plano Nacional de Educação – Meta 17. Disponível em: <https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMjhlNDA0N2MtN2FkOS00YmM0LWI4N2ItYWE2NGJmOTNmZTg0IiwidCI6IjI2ZjczODk3LWM4YWMtNGIxZS05NzhmLWVhNGMwNzc0MzRiZiJ9>. Acesso em: 26 out. 2023.
ELACQUA, G. et al. Profissão Professor na América Latina: Por que a docência perdeu prestígio e como recuperá-lo? Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 2018. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1vb7UIAymmHHiYbzsqMcH4_gH1HxCWeqJ/view>. Acesso em: 26 out. 2023.
NUNES, J. Veja as profissões com os piores salários no Brasil; professor de pré-escola lidera a lista. G1, 17 out. 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2023/10/17/veja-as-profissoes-com-os-piores-salarios-no-brasil-professor-de-pre-escola-lidera-a-lista.ghtml>. Acesso em: 26 out. 2023.
TALIS 2018 Results: Teachers and School Leaders as Valued Professionals. OCDE, 2020. Disponível em: <https://www.oecd-ilibrary.org/education/talis-2018-results-volume-ii_19cf08df-en>. Acesso em: 26 out. 2023.
TORRES, A. Antonieta de Barros, a parlamentar negra pioneira que criou o Dia do Professor. Disponível em <https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-10-15/antonieta-de-barros-a-parlamentar-negra-pioneira-que-criou-o-dia-do-professor.html>. Acesso em: 15 out. 2020.