A facilidade trazida pela tecnologia tornou-se parte integrante da vida na sociedade contemporânea. Hoje, é difícil encontrar qualquer indivíduo que não só tenha um telefone celular, mas que também dependa do aparelho seja para pesquisas, para manter contato com amigos e com familiares ou para trabalhar. Aos poucos, o telefone foi tendo cada vez mais funções, com a criação de aplicativos que levassem as lojas físicas para dentro dos aparelhos com o auxílio da internet, com a inserção de sensores de geolocalização e com o aparecimento de inúmeros aplicativos que utilizam de tais recursos para garantir um atendimento mais personalizado ao consumidor.

Com isso em mente, nos últimos anos observou-se o crescimento de aplicativos que funcionam através do sistema de trabalho sob demanda. A pandemia, em especial, fez com que esses serviços se tornassem ainda mais comuns por conta das restrições sanitárias, seja para transporte individualizado ou para entregas em residência. O número de inscrições de interessados em atuar na plataforma iFood aumentou cerca de 50% em março de 2020 em relação a fevereiro do mesmo ano. A plataforma Rappi viu o número de entregas na América Latina aumentar 30% nos dois primeiros meses de 2020 em relação aos dois últimos de 2019 [1]. 

Esse modelo de trabalho representa uma nova forma de organização, controle e gerenciamento do trabalho, que é tecnológico e ao mesmo tempo precarizado [2]. O retorno ao tipo de remuneração baseada na realização de tarefas determinadas, às jornadas de trabalho mais extensas — que são mal interpretadas como uma espécie de flexibilização das mesmas —, a falta de uma legislação de proteção laboral para uma classe recém-criada e a invisibilidade da falta de controle por parte dos trabalhadores remete a alguns parâmetros que relembram o início do modelo capitalista, o qual tinha como uma de suas características inquestionáveis a exploração do trabalhador.

Em um panorama descritivo, a maioria desses trabalhadores são homens, com idade entre 25 e 34 anos, e com o ensino básico completo. É notório ainda que há mais pessoas com ensino superior completo recorrendo a esse modelo de trabalho do que pessoas sem instrução.

 

Gráfico 1: Distribuição das pessoas ocupadas na semana de referência, por condição de trabalho por meio de plataforma digital de serviço no trabalho principal

Fonte: PNAD Contínua (2022)

 

Como é a jornada de trabalho?

De acordo com o artigo 7º inciso XIII da Constituição Federal (1988), o trabalhador tem direito a “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. No entanto, percebe-se que, para esse novo modelo de trabalhadores, a legislação nacional não é aplicável, uma vez que a grande maioria dos brasileiros que trabalham como prestadores de serviço nos aplicativos ultrapassam essa carga horária laboral prevista. Devido ao método de remuneração que é utilizado nos aplicativos, os trabalhadores plataformizados precisam aumentar a jornada de trabalho para garantir que a renda recebida irá ser suficiente para os gastos do trabalhador e de sua família. Conforme mostra o Gráfico 2, a jornada de trabalho dos trabalhadores plataformizados é maior que os trabalhadores da mesma área de atuação, só que não plataformizados.

 

Gráfico 2: Comparativo de jornada de trabalho entre trabalhadores plataformizados e não plataformizados

Fonte: PNAD Contínua (2022)

 

Pesquisas anteriormente realizadas por Ludmila Abílio [3], mostraram que muito dos trabalhadores sob demanda precisam trabalhar cerca de 10 a 12 horas por dia, no mínimo em 6 dias da semana, para serem capazes de garantir uma renda suficiente para custear as despesas com alimentação, contas e combustível, ou seja, para sobreviverem e para se manterem dentro do mercado de trabalho. Essa realidade, que remete ao passado, prejudica as condições de saúde e afetam milhares de trabalhadores no mundo.

É possível pensar que o esse novo modelo de trabalho assemelha-se muito ao modelo de trabalho empresarial: a flexibilidade de horário, o controle próximo das finanças, a maior autonomia para realizar decisões e, finalmente, a falta de um chefe. Esta última particularidade permite que estes prestadores de serviços se vejam como seus próprios chefes, capazes de trilharem seus próprios caminhos e, assim, tornarem-se realizados tanto como pessoa quanto como trabalhador e como empreendedor. Mas, na prática, a situação é muito mais complexa e enganosa do que parece ser.

 

A maior jornada implica em melhor remuneração?

Devido à noção ilusória e recorrente de serem chefes de si mesmos, muitos daqueles que entram nesse modelo de mercado informal acreditam que quanto maior a jornada de trabalho – mais extensa em comparação à grande maioria dos brasileiros -, maior será a renda auferida por eles. Porém, sua remuneração não está associada ao número de horas que esteve disponível para empresa, como é o habitual no mercado formal, e sim a um pagamento por tarefa.

Nesse modelo de recompensa, o trabalhador somente receberá pagamento pelas tarefas que, de fato, realizou, ou seja, um trabalhador sob demanda poderá ter uma jornada de trabalho de 14h diárias e apenas realizar duas atividades e, por isso, receberá um valor associado apenas a estas duas tarefas que foram realizadas. Neste exemplo, todo o restante de horas que passou ao dispor da corporação e todas as consequências físicas e mentais de uma jornada tão extensa e estressante serão simplesmente ignoradas [4]. O gráfico 3 mostra que apesar de uma jornada quase 20% maior, os motoristas plataformizados tem uma remuneração apenas 2% maior. No caso dos entregadores, apesar da jornada maior, os trabalhadores plataformizados têm uma remuneração menor.

 

Gráfico 3: Comparativo remuneração entre trabalhadores plataformados e não plataformados

Fonte: PNAD Contínua (2022)

 

É notório salientar que nem todo o valor associado à realização da tarefa é repassado para o trabalhador. Como estes são filiados a estas grandes empresas-aplicativo, todo o dinheiro arrecadado pelos trabalhadores é transferido para seus recrutadores que, após analisar a quantidade de tarefas realizadas no determinado dia, devolvem parcela desta quantia. Esse sistema reforça ainda mais a noção de que estes brasileiros não são autônomos, mas sim subordinados a um sistema de controle disfarçado.

 

E os direitos desses trabalhadores?

Outro aspecto desse modelo de trabalho é a falta de mediação empresarial, que é comum neste mercado. O prestador de serviço, além de não ter contato com um chefe direto, quase não possui contato com os membros da própria empresa, o que, além de dificultar o cotidiano do trabalhador, promove uma menor segurança no vínculo laboral entre empregador e empregado.

Embora muitos brasileiros possam considerar a falta de uma empresa mediadora de sua atividade como algo benéfico para o desenvolvimento econômico do indivíduo, essa realidade não pode ser aplicada a esses trabalhadores devido ao fato de que, em última análise, eles ainda não são independentes e precisam da empresa para a realização do trabalho. Porém, o vínculo existente entre trabalhador e contratante, neste mercado, é muito fraco, o que permite a exploração empresarial. A fraqueza do vínculo e a falta de contato direto que existe entre as partes impede que os trabalhadores sejam capazes de reivindicar seus direitos e garantir as melhores condições de trabalho que necessitam. 

Esses trabalhadores também não têm os benefícios sociais que os demais trabalhadores, com vínculos empregatícios, possuem. Muitas vezes eles também não contribuem para a previdência social, talvez pela remuneração já baixa, o que prejudica a sua aposentadoria no futuro.

 

Gráfico 4: Comparativo de contribuição para previdência entre trabalhadores plataformados e não plataformados

Fonte: PNAD Contínua (2022)

 

A situação dos últimos anos dessa classe de trabalho nacional demonstra que há diversos problemas relacionados aos contexto laboral desta. A falta de legislação específica para regular as empresas-aplicativo e a extinção dos direitos trabalhistas, assegurados através da luta dos trabalhadores no passado, propicia o trabalho com terríveis condições, como exemplificado pela jornada laboral gigante da maioria dos trabalhadores sob demanda, e a impossibilidade de adequação desse modelo informal de labor ao trabalho formalizado. 

A falsa noção de autonomia, a rara premiação pela proposição de metas quase inatingíveis e a liberdade que este modelo empregatício oferece são características muito presentes neste modelo laboral. Todos estes pontos são vitais para que a atração de mais novos filiados aconteça, o que torna-se mais evidente em momentos de crise econômica, e dificulta a mobilização em prol dessa aquisição de direitos. Cria-se uma prisão oculta que torna-se a única opção para aqueles que estão desesperados, mas que ainda é imperceptível para diversos de seus colaboradores.

 

Autores: Alexandre Henrique e João Vaz de Mello, sob a orientação do professor Bruno Lazzarotti

 

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro ou do CORECON – MG

 

Referências

[1] Mello, Gabriela (2020). Candidatos a entregadores do iFood mais que dobram após coronavírus. Disponível em: https://br.reuters.com/article/internetNews/idBRKBN21J6N4-OBRIN.

[2] Machado, R. (2017). Uberização traz ao debate a relação entre precarização do trabalho e tecnologia (Entrevista com Ludmila Costhek Abílio). Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU on-line). Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6826-uberizacao-traz-ao-debate-a-relacao-entre-precarizacao-do-trabalho-e-tecnologia.

[3] Abílio, L. C. (2019). Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Revista Psicoperspectivas, 18 (3), 1-11.

[4] Abílio, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time?. Estudos Avançados, 38 (94), 111-126.

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